domingo, julho 24, 2005

O Primeiro Vestuário dos Ouvidos

Foto de Londres

As máquinas audiometricas Inglesas, bastante desenvolvidas, invadiram os meus ouvidos e encontraram assim o meu mundo silencioso que se encontrava oculto. Uma vivalma de sons. As minhas células de audição, localizadas no “caracol” interior do ouvido, estavam destruídas ou queimadas pelo vírus que surgira durante o processo de gravidez. Qual vírus, não se sabe. Desconhece-se o microrganismo por não ter deixado o seu rasto.

Os meus pais estavam sentados, agarrados um ao outro, o forte braço paterno sobre o ombro delgado materno, ambos fitando o médico otorrino, vestido de bata branca impecavelmente engomada, que observava com um ar sério os registos obtidos dos exames.

Por fim, dando um suspiro, o médico levantou os olhos do papel e olhou-os de frente. Falou em inglês:
— A vossa filha é surda profunda, com uma perda auditiva muito elevada em ambos os ouvidos. — deixou uma pequena pausa para que os pais assimilassem a verdade.
— Haverá alguma solução para que a nossa filha possa recuperar uma audição perdida? Será possível o milagre de uma cirurgia? Ou a ajuda de próteses auditivas? — interrogou o meu pai.
— Recuperar uma audição completa na vossa filha é uma hipótese nula. Não há nada a fazer em relação à cirurgia porque a vossa filha apresenta muitas células auditivas mortas. Quanto às próteses, poderão ajudá-la mas apenas um pouco, captará somente ruídos indefinidos.
— Quer dizer que a nossa bebezinha nunca será uma ouvinte como nós?
— Exacto. É uma surdez que será permanente. Neste momento, não há esperanças de cura. Lamento muito… Mas, do ponto de vista da reabilitação, há muitas possibilidades de progresso se ela for bem acompanhada a partir de agora…

A limitação dos aparelhos não impediu os meus pais de os aceitar. Queriam, pelo menos, clarear a escuridão do meu profundo silêncio, por muito pequena fosse a luz sonora, quase como uma faísca. Para eles, era melhor que nada. Viam o silêncio como sem respiração, algo de que não conseguiam imaginar, que os sufocava. Eles próprios sabiam o quanto era maravilhoso escutar imensos sons e queriam conceder-me esta beleza.

E assim, os dedos longos e pálidos do médico inglês colocaram as primeiras próteses auditivas nos meus ouvidos. Eram aparelhos bastante notórios. Pareciam dois botões. Cada um deles saía um fio e ambos se uniam no meu pescoço formando num só fio, que iria parar a uma caixa metálica que servia de comando exterior. Colocaram uma pequena bolsa preta ao meu peito para proteger este comando.


(Vagueio num baú de memórias e não encontro aquela sensação nova dos primeiros sons que me preencheram, do primeiro formigueiro sonoro que me invadiu… Não me recordo. Eu era um bebé. Foi, na companhia destes novos objectos, que comecei a dar os primeiros passinhos!)

domingo, julho 17, 2005

O Segredo da Surdez Desvendado

Com um ano e 4 meses de idade, subi aos céus num interior de uma gigantesca aparelhagem voadora com asas brancas. Voei ferrada ao pescoço da minha mãe. O pai também ia ali sentado ao lado. Eram um casal jovem, com pouco mais de 20 anos.

Aterramos em Londres.

Naquela cidade pertencente aos monárquicos, nessa cidade das ruas escuras e estreitas, fui submetida a exames audiométricos. As máquinas detectoras da surdez eram tecnologicamente mais avançadas que as de Portugal.
Então, exploraram os meus ouvidos, entraram para dentro deles e assim mediram o grau da minha Surdez. Tudo tremeu. O som era tão alto que atingiu um tecto transparente, que transbordava uma onda mortal para os ouvintes.

No final, os resultados ergueram-se. A cortina do segredo escondido abriu-se e surgiu a classificação:
Surdez Bilateral Neurosensorial de Grau Profundo.

100% de silêncio em ambos ouvidos…

domingo, julho 10, 2005

Ensurdecer

Durante duas semanas, com ou sem sol, com nuvens a acenar ou a transpirar, com um manto de calor a evaporar ou a descair, viajei por entre palavras e frases dentro de um livro.
Avidamente, folhei cada página com uma incredulidade surpreendente, com uma respiração tantas vezes suspensa, com um esgar de horror e… cheguei ao fim desfeita em água!

Ao longo dos dois primeiros capítulos, fui encontrando algumas luzes idênticas entre mim e Grania. Estando nela, fui-me revendo a mim própria… As dificuldades de integração e de comunicação, os treinos da fala, a leitura labial, a ignorância e a maldade das pessoas, os medos…
Esta personagem, tão doce e tão especial, ficou surda profunda aos 5 anos de idade devido a escarlatina. A sua avó Mamo, também muito especial e de grande coração, foi a sua salvadora. Foi a avó Mamo que lhe abriu as portas para a Vida. E Tress, irmã de Grania, também ajudou muito.

A partir do III capítulo, as palavras nadam em sangue e lama suja, saltam aos tiros dos canhões e das espingardas. O fundo de cada página chega a manchar-se de castanho e verde escuros, de cinzas e gotas vermelhas… São os horrores indescritíveis da Primeira Guerra Mundial.
Nunca li nada assim, nunca estive sob a pele de um maqueiro que apenas recolhe soldados feridos para o posto médico. Este maqueiro é, nem mais nem menos, o grande amor de Grania, o seu marido “Chim”.

O livro é ficção, mas dissolve-se em factos verídicos.

Sobre a autora Francis Itani, vasculhei na pesquisa à procura de uma razão que a levou a escrever este livro. Quis saber, em especial, de onde vinha a enormidade da sua informação sobre o mundo de surdos.
Saíram desta pesquisa, como os coelhos surgem do interior de uma cartola mágica, três letras. Estas letras grandes brilharam incessante sob a luz do meu coração: AVÓ!
A avó de Francis Itani era surda! Foi através dela e da sua própria participação nos trabalhos voluntários na comunidade surda, que se inspirou para escrever este livro!

Um livro profundo e tocante! Absorvente… Que não se esquece tão cedo, que é para ser relido com AMOR!