domingo, novembro 20, 2005

A Fobia da Escuridão

Algures, num pontinho rural de Espanha, situado um pouco a norte, onde se cheirava o ar puro e se via pintado o mundo de verde acastanhado, resultante de uma mistura de árvores verdejantes e de montes, nós – eu e a minha família – ficámos ali instalados para uma noite de férias. A casa era de campo.

A minha irmã e eu ficámos a partilhar o mesmo quarto. Era pequeno mas de uma simplicidade acolhedora. Do chão, erguiam duas camas floridas, lado a lado; duas cabeceiras em cubo de madeira castanha-escura, enfeitadas por dois candeeiros prateados.

A noite tinha chegado com as estrelas a acenarem uma doce canção. A minha irmã, antes de se deitar, correu para a janela e baixou totalmente os estores, com naturalidade.

Tirei as minhas próteses e pousei-as na mesa-de-cabeceira. Elas também dormem.

Um pano negro de escuridão envolveu-nos. Fechei os olhos enchendo-me de coragem. O tempo passou em bicos de pés e, quando chegou a altas horas de madrugada, um grito aterrador explodiu na minha garganta, fazendo com que toda a casa vibrasse de eco. A minha irmã acordou apavorada e veio imediatamente a acudir-me… Encontrou-me banhada em suor e a tremer convulsivamente. Os sintomas do pânico.

Tinha tido um pesadelo. Quando abri os olhos para desligar este sonho mau, procurei um indício de luz e não a encontrei em lado nenhum. Apenas Silêncio e Escuridão. Tudo tão negro. Não havia sequer um vulto mínimo para me dar uma mão, para me trazer à Terra... Parecia que estava a cair num buraco sem fim, que flutuava como um balão perdido às avessas… Respondendo aos meus berros, aflitos e lacrimosos, em busca desesperada de Luz, de um suporte de vida, ela acendeu o candeeiro. Logo os meus olhos acalmaram… e voltei adormecer.

As horas decorreram a um ritmo de tic-tac silencioso até ao amanhecer. Os raios solares abraçaram o rosto da minha irmã, vindo a surpreendê-la e a atordoá-la… De onde vinha esta luz intrometida?! Abriu, pouco a pouco, as pálpebras inchadas de sono e, deparou-se comigo em pé, com os cotovelos apoiados sobre o parapeito da janela. Estava eu sonâmbula, a dormir acordada, observando um nascer-do-sol… Até sorria com as festinhas do sol sobre a minha pele.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Um Colar de Lágrimas

Recuando ao 11º ano de escolaridade, na área das fórmulas, das contas intermináveis e das reacções mágicas, voltando àquele dia em que ficou tatuado no meu coração.

Quatro colegas conversavam, animadamente, sentadas nos bancos altos e estreitos, à volta de uma mesa rectangular de laboratório, onde no seu centro espreitavam enfileirados tubos de ensaios assombrosos, copos de precipitação brilhantes e gobelés gordos. Este convívio decorria na mais bela melodia.

Saí desta sala por um instante e, quando voltei, cheirei algo de negativo. Algo não me soava bem. As minhas antenas de sensibilidade estremeceram.

Uma delas, M., saiu da sala a alta velocidade passando por mim, visivelmente agitada, e regressou com um grande dicionário. As colegas, que eram agora cinco, fizeram um círculo apertado e debruçaram-se sobre o dicionário à procura de algo... Todas se mostravam concentradas e sérias. Aquele quadro intrigou-me!

De repente, a minha amiga V., companheira de todos minutos na Escola, explodiu de indignidade e mágoa contra uma delas. O bombardeio de palavras entre as duas fez com que se atacassem fisicamente e foram imediatamente separadas à força pelas mãos de outras colegas.

V. agarrou-me e levou-me para fora da sala. Foi, então, que me recapitulou o sucedido.

Uma destas colegas atirou-me uma bola negra emitindo “Surda-Muda”. Uma bola ofensiva que causou um furacão de zangas. V. e M. opuseram-se dizendo que eu era apenas Surda e não Muda. O dicionário até o provou! Contudo, a adversária ignorou… Referiu bem alto, em plenos pulmões, que os jornais e os livros antigos escreviam, geralmente, “Surdos-Mudos”. E eu assim o era! A seguir, apontou-me lançando um raio, de que eu não devia pertencer a esta turma Ouvinte, mas à de Surdos-Mudos.

No final da sua explicação visivelmente tremida, mantive-me impassível. Esta crueldade já não era a primeira… O meu coração construiu, desde muito cedo, uma armadura rija para se proteger contra estas setas cruéis.
Mas V. chorou. Como desejei agarrar aquelas gotas de lágrimas e transformá-las em pedras transparentes para depois fazer um colar, em sinónimo de amizade pura e de reconhecimento!

domingo, novembro 06, 2005

Uma gulodice...

Acaricio as fotos descoloridas, ensopadas pela humidade acumulada ao longo de vinte e nove anos, e com elas tento ressuscitar as minhas memórias de berço.

Os meus olhos de bebé eram grandes e límpidos de vivacidade. Observavam tudo: as formas, as cores, o que tinha movimento e o que era novo e até estranho. Para aqueles olhos, o que viam era um espectáculo de graça, de magia!

O meu olhar seguia precocemente os contornos dos grandes lábios dos meus pais e da pequena boca da minha irmã. Durante estes momentos cruciais de observação, surgia no centro de cada íris negra um brilho de estrelas. Este brilho não parava de piscar. Era um piscar guloso que crescia à medida que vislumbrava os movimentos labiais como se fossem de chocolate.

Era todos os dias, nas horas de carinho, que estes lábios ondulavam a brincar, a sorrir e a amar para os meus olhos. Desenhavam pausadamente as primeiras palavras da Língua Portuguesa. Estes desenhos labiais eram as suas prendas de Vida que os meus olhos desembrulhavam e guardavam para o meu interior. Sobre a base do subconsciente, os sons labiais amontoavam-se e ali ficavam ao monte como brinquedos adormecidos à espera de serem reconhecidos e explorados.