sábado, janeiro 28, 2006

Meus Dedos em Dança

Encontro-me no antigo quarto da minha irmã, agora transformado em escritório, com os meus olhos fixos num canto especial, onde havia um soberbo piano. Este instrumento foi retirado e transportado para outro sítio, bem longe de nós. Com ele levou as nossas alegrias e tristezas, mas ficaram as memórias. Recordo o seu brilho negro que ofuscava qualquer olhar atrevido. Estava sempre disponível para ser tocado, para libertar as suas músicas escondidas, sob um acariciar firme de dedos.

A sua dimensão era gigantesca face à minha altura de criança. Era um assombro, parecia que, a qualquer momento, ia me devorar como um monstro! Mas o seu mistério içava a minha curiosidade ingénua. Ficava eu a olhar hipnotizada para aquelas barras amarelas e pretas.


A minha mãe, quando tocava, transparecia uma aura de encanto! As suas mãos delgadas e jovens dançavam, com os dedos delirando ao ritmo apaixonante da música, e abanava o corpo com uma elegância e doçura especiais de uma mulher nobre, como as dignas senhoras do século XVIII.


Como não podia deixar de ser, para satisfazer a minha curiosidade, passei a ter lições de piano com a minha mãe. Foi então que me contou os segredos das barras. Cada tecla libertava um som e cada nota musical tinha um nome. Sol, Mi, Fá, Dó, Si, Ré… O lado direito era mais agudo que o do esquerdo. Quão simples isto era!


Recuando para trás, aterro-me numa recordação inesquecível de uma mini-festa.


Aquela menina, com os seus cabelos revoltos de rebeldia, lia os lábios maternos:
- Querida filhota, queres tocar piano para eles ouvirem?


Eles eram os convidados. Pessoas adultas. Como eu tinha medo destes estranhos, eram superiores e sérios, mas o meu orgulho falou mais alto. Queria mostrar que sabia tocar piano! Consenti, movendo a cabeça.


Todos se reuniram no quarto da minha irmã, segurando os copos esguios com champanhe. Alguns esforçavam-se por sorrir para me dar força.


Deslizei e sentei-me no banquinho, em frente do piano, ficando de costas voltadas para os presentes. Devagar, levantei a tampa. Sentia como se o meu coração estivesse na garganta, prestes a sair para o exterior!


Mal pus os dedos a flutuar por cima das barras, os burburinhos das vozes silenciaram-se. Tudo ficou suspenso e a aguardar pela explosão de ruídos.


Os meus dedos, visivelmente trémulos, começaram a dançar, a saltitar de uma tecla para outra. Ora com velocidade, ora com lentidão. Em notas longas ou curtas. Os formigueiros de sons percorriam-me o meu corpo, fazendo com que me embalasse. Por fim, selei a música com um som grave e prolongado até se esfumar o seu eco.


Virei-me e sorri inocentemente, mas o meu sorriso depressa se desvaneceu perante os espectadores… Estavam especados como estátuas de pedra, mudos e em transe. Detectei gotas de água a brilharem à superfície ocular… De repente, a emoção sentida derramou em palmas que me atingiram, que puseram os meus pêlos em pé.


O meu sorriso duplicou, agradecendo ao piano, ao seu poder mágico por levar as pessoas a sentirem assim!

Agora, sei porque é que eles ficaram assim. Não pela música mas por ser eu a tocar. Viram que… “o impossível era possível”.

domingo, janeiro 15, 2006

O Feitiço das Cartas

Encontro-me sozinha, no meu quarto de criança, com a porta trancada e persianas corridas. Estou sentada a fitar as folhas magrinhas, semelhantes a cartas, que estão infantilmente espalhadas sobre a mesa redonda.

Tenho que escrever uma carta para uma pessoa que me é muito querida e que se encontra a mil léguas de mim.

Tudo à minha volta está quieto, não se atreve mexer. Nem sequer uma poeira se levanta. O candeeiro, alto e imponente, verte luz e calor sobre as minhas mãos, ainda pequeninas, pouco desenvolvidas e frágeis, próprias de uma criança com nove anos. A estante, a cama e as paredes observam-me, escutando a minha concentração silenciosa.

Começo a conversar com uma folha branca, como aquela que está pousada à minha frente. Uma conversa somente visual. Acarinho as suas linhas, fazem-me suspirar… Como é tão bom senti-las sob os meus dedos! Tão macias. A cor das linhas, de um azul-arroxeado, atrai-me para a escrita.

A minha mão direita segura um lápis altivo e afiado e, febrilmente, começa a escrevinhar os momentos alegres passados. À medida que a minha caligrafia se forma e se passeia pelas linhas horizontais, desabrocha no meu interior cada cor de felicidade, até se completar num arco-íris. A sensação que sinto, a viagem por entre os símbolos do abecedário, é como se estivesse a voar, a sentir magia! Cada palavra faz-me crescer.

Não deixo as minhas palavras saírem tortas. As vogais têm de ser bem redondas e as consoantes bem delineadas. Têm que ser tratadas como um gato mimado.

Ao fim de uma hora, termino a carta, redigida com muito esforço por me faltarem milhares de vocábulos. Saio do meu quarto com três folhas, preenchidas pela grafite, e corro para mostrá-las à minha mãe.

– Mamã!! Tenho a carta para veres se está bom!

No momento da correcção fico imóvel, ao lado da minha mãe, observando a minha carta a ser transformada em sangue, as minhas frases, principalmente os tempos verbais, a serem riscadas ou alteradas, com um marcador vermelho. Cada rabisco vermelho queima-me, fico até aturdida! De repente, quando estava à espera de mais sangue derramado, cessa…

– Não há mais erros? – exclamei visivelmente atónita.

– Minha filhota! – reparo o brilho de orgulho no olhar verde, este brilho materno cheio de amor a dizer verdade – A carta está muito boa! Parabéns!

Pego nas folhas doridas, levo-as até ao sítio do meu coração e vou para o quarto aos pulos, cada vez mais feliz com os meus progressos de escrita.

- Amanhã, escrevo mais!


(Este é um dos maravilhosos episódios da minha infância. Com esta idade, já escrevia cartas quase todos os dias. Com prazer. Como se a escrita fosse o meu melhor brinquedo! Quando via erros, nunca parava ou desistia. Embora me fizessem doer, aceitava-os para escrever cada vez melhor. Desde muito cedo, aprendi a sua importância .)

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Risos de Oiro

Foto by SilenceBox


A pele do velho ano 2005 começou a descolar-se, tal como a pele de uma cobra. Os ponteiros do relógio começaram a aproximar-se das doze badaladas em cada segundo que passava.

O dia 31 de Dezembro maquilhou-se de nuvens, em tons cinzentos e encaracolados, espalhou o perfume campestre e marítimo de Comporta através do sopro do seu ar e pôs-se assim especial para uma tarde de fotografia com um concurso entre amigos.

Dividimo-nos em dois grupos: “rapazes” para um lado, “raparigas” para outro e seguimos.

Eu, a minha irmã, a I. e a R., partimos todas a rir como crianças felizes. Elas tiveram uma ideia invulgar… Iríamos tirar fotos de palhaçadas. Assim fizemos, em bom gozo, imaginando as caras deles quando as vissem! Focámos e fotografámos cartazes de publicidade, folhetos de distribuição política, o chão, transportes alentejanos, ninhos de cegonhas e arrozais.

A sessão de fotografias terminou com um sorriso alegre e cheio de apetite para um belo lanche!

Enquanto o céu escurecia, entraram todos para o calor da vivenda alugada. Menos eu. Fiquei cá fora. O meu olhar passeou, ao acaso, num arco horizontal de 180º. Pairava uma serenidade no pôr-do-sol refrescante, as cegonhas voavam, regressando aos ninhos, o burburinho da brisa roçava a minha face, e a máquina de fotografia encontrava-se pendurada, quase esquecida, ao meu peito. O que é que eu estava à procura? De nada. Apenas contemplava e saboreava estes segundos de solidão, em harmonia com a natureza. Foi então que algo me chamou atenção…

Havia muita luz por cima de mim, olhei para ver o que era… Fiquei deslumbrada! As luzes dos candeeiros pareciam dançar em anéis. Até tive sensação de ter ouvido risos de oiro.

As minhas mãos, impulsionadas pelo sentimento de encanto, ergueram a máquina e alimentaram-na com todos os ângulos deste quadro.

Esta foto foi seleccionada pela maioria dos participantes e foi a vencedora, surpreendendo-me a mim própria.


(Quero agradecer à minha querida irmã por ter proporcionado este dia jubiloso e divertido que me fez rir –há tanto tempo que não me ria assim-, até as nuvens se embelezaram com a nossa música de gargalhadas! Como me senti leve como algodão!)