A porta do quarto da minha irmã está entreaberta. Espreito para o interior e encontro-a deitada acima da cama, confortavelmente encostada às almofadas, com as suas longas pernas dobradas em duas montanhas para fazerem de suporte ao livro.
Reparo em algo de estranho nos olhos dela. Estão vidrados. Observam para lá da realidade, para outro mundo que eu não vejo. Estão distantes como se estivesse a flutuar. De repente, as gotas de água deslizam pelo seu rosto… Pisco os meus olhos, bastante confusa. Sim, está a chorar. O ar enche-se de tristeza, mas sinto que não é dolorosa. Não é uma tristeza que grita dor. É diferente. Cada músculo da sua pele treme de emoção, cada pêlo se eleva arrepiado. O longo suspiro sai por entre os dentes, tal como quando um balão é furado por uma agulha e sai um fio de ar. A emoção não coube dentro de si…
As interrogações chovem em granizo inundando a minha cabeça de criança. O que é que tem o livro? É sobre o quê? Porque é que chora assim? E porque é que o lê se é tão triste?!
Quando fecha este livro, com uma suavidade excepcional, como se este livro fosse um tesouro seu, entro de rompante. Ela sobressalta-se e limpa logo as lágrimas, notoriamente embaraçada e surpreendida. O meu olhar, em forma de anzol, pesca imediatamente a capa e leio o que está escrito: “A Princesinha”.
- C., porque é que estás a chorar? Acaba mal? É triste?
Após ponderar, durante poucos segundos, responde-me:
- Acaba mal e acaba bem. É uma linda história…
Fico ainda mais confusa. Como é que uma história pode ter dois fins? E como é que uma história tão triste pode ser bonita? A minha lógica era que, para as pessoas ficarem contentes e alegres, deviam ler contos de fada e histórias com fins felizes.
- Então, conta-me! Quero saber…
- Não te conto! Mais tarde vais ler!
Pego no livro, ponho-me a folheá-lo, tentando descobrir o mistério todo que surtia efeito na minha irmã, mas só vejo as páginas traçadas de linhas pretas. As letras parecem ter vida, parecem formigas. As frases dão mão a outras frases formando uma espécie de cortinado linguístico, vendando um outro mundo. Um cortinado tão pesado, que pesa como chumbo e tão complicado para ser aberto!
- É tão difícil… Não percebo nada!
- Claro! Agora não percebes porque ainda é cedo. És nova. Só quando fores grande. Vais ver que és capaz!
Olho para aqueles olhos castanhos. Brilham como diamantes. Lê-se a verdade desenhada no seu fundo.
- Vou conseguir? Não sei…
- Vais ver…
Sorri para mim, aquele sorriso orgulhoso e seguro, que o meu coração apanha e abraça. Guardá-la para dentro de si e ali fica guardado eternamente.
(Tinha 8 anos e ela 12 anos. Foi C. que me influenciou, que me levou a amar os livros. Ela sabia que eu ia conseguir. Li “A Princesinha” aos 14 anos e as minhas lágrimas também se derramaram. É, de facto, uma bela história! Acaba mal e acaba bem...)