segunda-feira, março 27, 2006

Os sumos da Vida


Crueldade, Hipocrisia, Falsidade e Ignorância, de mãos dadas num círculo fechado, transformam-se numa laranja. O seu sumo é tão amargo que solta violentamente as nossas lágrimas de dor, que nos arranha com as suas agulhas ácidas.

Existe um sumo mais doce que anula esta amargura… É o sumo do Amor e da Amizade misturado. O seu sabor não iguala com todos os sabores, é apenas único. É um líquido doce e quente que canta amor, ternura e protecção. Só o paladar do coração é que o saboreia e reconhece o seu fluxo. Este suco, apenas uma gota dele, faz colorir tudo, provoca o voo das flores, desenha um arco-íris de borboletas, cria os perfumes adocicados, pinta a natureza de cores mágicas, soa a risos de cócegas musicais, causa vertigens de alegria e cheira sobretudo a Vida.

Infelizmente, o sumo do Amor e da Amizade é raro e disperso, é como encontrar uma poça de água no deserto!

sábado, março 18, 2006

Histórias que acabam mal e bem: “Mais tarde vais ler!”

A porta do quarto da minha irmã está entreaberta. Espreito para o interior e encontro-a deitada acima da cama, confortavelmente encostada às almofadas, com as suas longas pernas dobradas em duas montanhas para fazerem de suporte ao livro.

Reparo em algo de estranho nos olhos dela. Estão vidrados. Observam para lá da realidade, para outro mundo que eu não vejo. Estão distantes como se estivesse a flutuar. De repente, as gotas de água deslizam pelo seu rosto… Pisco os meus olhos, bastante confusa. Sim, está a chorar. O ar enche-se de tristeza, mas sinto que não é dolorosa. Não é uma tristeza que grita dor. É diferente. Cada músculo da sua pele treme de emoção, cada pêlo se eleva arrepiado. O longo suspiro sai por entre os dentes, tal como quando um balão é furado por uma agulha e sai um fio de ar. A emoção não coube dentro de si…

As interrogações chovem em granizo inundando a minha cabeça de criança. O que é que tem o livro? É sobre o quê? Porque é que chora assim? E porque é que o lê se é tão triste?!

Quando fecha este livro, com uma suavidade excepcional, como se este livro fosse um tesouro seu, entro de rompante. Ela sobressalta-se e limpa logo as lágrimas, notoriamente embaraçada e surpreendida. O meu olhar, em forma de anzol, pesca imediatamente a capa e leio o que está escrito: “A Princesinha”.

- C., porque é que estás a chorar? Acaba mal? É triste?

Após ponderar, durante poucos segundos, responde-me:
- Acaba mal e acaba bem. É uma linda história…

Fico ainda mais confusa. Como é que uma história pode ter dois fins? E como é que uma história tão triste pode ser bonita? A minha lógica era que, para as pessoas ficarem contentes e alegres, deviam ler contos de fada e histórias com fins felizes.

- Então, conta-me! Quero saber…

- Não te conto! Mais tarde vais ler!

Pego no livro, ponho-me a folheá-lo, tentando descobrir o mistério todo que surtia efeito na minha irmã, mas só vejo as páginas traçadas de linhas pretas. As letras parecem ter vida, parecem formigas. As frases dão mão a outras frases formando uma espécie de cortinado linguístico, vendando um outro mundo. Um cortinado tão pesado, que pesa como chumbo e tão complicado para ser aberto!

- É tão difícil… Não percebo nada!

- Claro! Agora não percebes porque ainda é cedo. És nova. Só quando fores grande. Vais ver que és capaz!

Olho para aqueles olhos castanhos. Brilham como diamantes. Lê-se a verdade desenhada no seu fundo.

- Vou conseguir? Não sei…

- Vais ver…

Sorri para mim, aquele sorriso orgulhoso e seguro, que o meu coração apanha e abraça. Guardá-la para dentro de si e ali fica guardado eternamente.


(Tinha 8 anos e ela 12 anos. Foi C. que me influenciou, que me levou a amar os livros. Ela sabia que eu ia conseguir. Li “A Princesinha” aos 14 anos e as minhas lágrimas também se derramaram. É, de facto, uma bela história! Acaba mal e acaba bem...)


segunda-feira, março 13, 2006

As Algemas da Corrente


Foto by Jorge Cascais

Levei algum tempo para decidir se devia ou não participar numa corrente de bloguistas porque não sabia se era uma brincadeira ou se era um jogo de verdade!

Este alguém, presumo do sexo feminino,
teacher = simple past , lembrou-se de mim e arriscou-se a lançar-me as algemas da corrente. No entanto, não me agarraram bem. Caíram imediatamente sobre o solo oco do esquecimento e ali ficaram abertas e abandonadas. Um dia, numa visita aos blogs da Leonoretta e Maheve, toquei nas algemas acidentalmente e, num ápice, como uma cobra num ataque imprevisto, elas fecharam-se nas raízes da minha mente! Fizeram com que me revisse a mim própria e assim visualizei as minhas cinco manias.

Aqui estão:

1. Fazer festinhas, cheirar e conversar com os meus queridos e estimadíssimos livros.
(Necessito de os ver em todos os lados e todos os dias!)

2. Dormir na escuridão sendo apenas iluminada pela luz azulada e fantasmagórica de um pequeno fantasma do Ikea que está na mesa-de-cabeceira.
(Gostaria de saber se existe mais alguém, a partir dos 30 anos, que dorme com este objecto luminoso…)

3. Usar diminutivos excessivamente: “É tão queridinho…”; “Olha só que coisinha fofa!”; “Que olhinhos tão meigos!”; “É um amorzinho!”.
(Não é o que pensam. Digo tudo isto ao meu animal de estimação, de quatro patas e que ladra como uma minúscula fera!)

4. Beber café a escaldar, de excelente qualidade, com um rico sabor e bastante espumoso.
(Sou uma especialista na escolha de um bom café!)

5. Deixar espalhado no chão do meu carro: livros de trabalho, folhetos de publicidade, papéis de rascunho, sacos de plástico, etc.
(Que vergonha…!)

Já cumprida a missão, as algemas desapertaram-me suavemente e pediram-me para que as passasse para as Cinco bloguistas. Andei vacilante na decisão a quem devia passá-las…
Memorex, Menina-Marota, myanmar, Tijolices e T.X. têm a dignidade de aceitar estas algemas e participarem no mesmo jogo?

[Cada bloguista participante tem de enumerar cinco manias suas, hábitos muito pessoais que o diferenciem do comum dos mortais. E, além de dar ao público conhecimento dessas particularidades, tem de escolher cinco outros bloguistas para entrarem, igualmente, no jogo, não se esquecendo de deixar nos respectivos blogues aviso do "recrutamento". Ademais, cada participante deve reproduzir este "regulamento" no seu blogue.]

segunda-feira, março 06, 2006

O perigo à espreita…

Mal entrei na sala de laboratório, o quadro já estava rabiscado de instruções para a realização de uma experiência química.

Como de costume, antes do início experimental, a professora tagarelou pedagogicamente durante uns 10 minutos. Eu não acompanhei esta introdução oral pelo facto de não entender os seus lábios, visto que falava à velocidade de um filme a rodar 4 vezes mais rápido que o normal. Para mim, bastava o que estava escrito. Era como seguir as instruções para montar um vídeo. Fazer isto e depois aquilo. Além disto, eu já sabia o nome de todos os materiais, conhecia quase todas as substâncias químicas e era já experiente nos cálculos. Não tinha dúvidas nem dificuldades. Portanto, de que servia aquelas curtas e pré-explicações? Mas as minhas colegas escutaram atentas, amontoadas em pé num apertado círculo como os pinguins se juntam contra as tempestades de gelo para não perderem calor.

Por fim, o silêncio chegou e começaram a dispersar-se cada uma indo para o seu lugar.

Era um trabalho individual. Iríamos trabalhar com o ácido. Já estávamos informadas de que era uma substância bastante perigosa, que corroía tudo como se tivesse dentes aguçados e invisíveis.

Os nossos objectos indispensáveis, como papel, lápis e máquina de calcular, foram logo explorados para nos darem as respostas quantitativas de que precisávamos para a experiência. Fiz os cálculos pretendidos com uma perícia apaixonante. Era como se estivesse a jogar um puzzle. As peças eram as contas em que tinha de as encaixar umas com as outras. Tudo estava relacionado. O mais emocionante disto tudo era quando o último resultado completava o puzzle! Era uma sensação de triunfo.

Tinha que preparar uma solução ácida. Eu estava confiante nas minhas capacidades e achei que não precisava de espiar as outras para as imitar.

Ali estava um frasco acastanhado, contendo o ácido, à minha espera. Segundo as contas feitas, tinha que retirar um pouco de líquido terrorífico deste frasco para o balão de vidro e posteriormente, acrescentar a água destilada até atingir a uma proporção desejada, formando assim uma solução aquosa.

Num instante, em que já tinha deitado o ácido para o balão, a professora que por acaso ali passeava a observar os nossos trabalhos, estacou atrás de mim. Empurrou-me bruscamente, deixando-me incrédula. Pegou no balão e correu até ao lavatório mais próximo, com o rosto assombrosamente lívido. Abriu a torneira com uma aflição sufocante, como se a própria torneira estivesse em fogo e queimasse os seus dedos, e colocou a barriga do balão para debaixo da torrente de água fria. Afastou-se esticada, continuando a segurar pela extremidade superior do balão para o rodar a 360º, e fechou os olhos à espera que algo pusesse acontecer…

Ali fiquei feita num espantalho a ser abanado ao vento, com o coração descompassado aos saltos, tentado assimilar o acontecimento. As colegas olhavam para mim, quase levando as mãos às bocas para não desatarem a gritar. Estes olhares picaram-me, fazendo-me quase desmaiar…

Nada de grave sucedeu. O balão refrescado pela água fria foi finalmente pousado na mesa. São e salvo. Completamente inteiro.

A professora, já recuperada pelo susto, explicou-me falando devagar, com os lábios ao nível dos meus olhos que, a muito custo, conseguiram ler:
- Desculpa… Por pouco, o balão podia ter quebrado! Eu avisei no início da aula mas esqueci-me de que não ouvias… Avisei todos alunos que deviam deitar um pouco de água destilada para o balão e só depois o ácido. A culpa foi minha… devia ter escrito no quadro. Não volta a acontecer… Já passou…


(Era frequente os professores esquecerem a presença de uma aluna surda nas suas aulas. Não estavam habituados. Eu era a primeira e única surda nesta escola.)