terça-feira, outubro 17, 2006

Dia X e Dia Y

foto retirada daqui

Dia X (Com 14 anos de idade)

Entrei apressada na papelaria, transpirando e arfando por causa da corrida, com um enorme maço de papelada a pesar-me por debaixo do braço.

Aproximei-me da fotocopiadora e entreguei os apontamentos à funcionária que já me conhecia desde criança.

- Boa tarde! 5 cópias de cada folha, por favor.

Uma desconhecida aproximou-se de mim. Intrigada, virei-me e olhei-a de frente. Neste preciso momento, os seus lábios afloraram-se:

- Desculpe, a menina é italiana?

Esta interrogação lançou-me uma baforada de vento que me abanou toda. “Eu, italiana?! Que ironia…”, pensei. Os tentáculos pretos da complexidade, que se encontravam adormecidos, completamente enrolados, num sítio oco e interior do meu corpo, desentorpeceram-se pelo barulho inconveniente deste pensamento. Meios desnorteados, agitaram-se ferozmente e despejaram-me a tinta negra de vergonha: “Não vais dizer que és surda! Diz que sim!”.

- Sim… - escapou-se-me uma afirmação sussurrada e bastante quebradiça…

A senhora, em vez de se afastar de mim, tornou-se mais amável e pôs-se a tagarelar devagar:

- Itália é um país lindo! Já fui…

Fiquei imóvel, de olhos arregalados, escutando com a minha visão cada palavra que se formava na sua boca, sentindo deslumbrada como se estivesse a ser hipnotizada por uma voz apaziguadora. Os pormenores mágicos, os monumentos grandiosos e únicos de Itália. A senhora era uma verdadeira apaixonada por este País.

- A menina é de onde?

De repente, a fantasia foi-se violentamente e despertou-me para a terrível e atormentada realidade. “E agora? Terei que dizer a verdade à senhora?”, perguntei em silêncio aos meus fantasmas que continuavam a brandir os seus tentáculos.

Felizmente, a funcionária salvou-me a tempo, entregando-me as fotocópias.

- Foi um prazer falar com a senhora mas, desculpe, tenho que ir! Estou atrasada! Boa tarde!

Ofereci-lhe um sorriso visivelmente grato, por este tempo curto mas bem precioso. E voei pela porta fora, com o coração endoidecido e embebido de remorsos.


Dia Y (Actualidade)

Sob as nuvens carregadas de cinzento, assobiando uma ameaça de provocar uma chuva torrencial a qualquer momento, caminhei em passos lentos e descontraídos. Passei por um grupo de pessoas. Duas mães acompanhadas de duas filhas.

Uma destas senhoras veio na minha direcção, retirando uns folhetos dentro da pasta negra que levava na mão. A pequenita, segurando a saia da mãe, observava o procedimento desta, quieta com uma inocência estampada no rosto e de respiração suspensa.

A mãe começou a atirar-me correntes de sons, a uma velocidade alucinante, que me deixou sem jeito e atordoada. Quando já estava quase no fim da explicação oral, é que consegui soltar a minha voz:

- Desculpe… Sou surda! Fale devagar.

Perante a minha veracidade, já amadurecida pelos anos passados, liberta de complexos e orgulhosamente firme, a mãe ficou empalidecida e apatetada, engoliu a fala aos trapalhões e começou a fazer mímicas. Apenas a apontar aos folhetos e nada mais. Entregou-mos, pegou a mão da filha e foram-se embora.


quarta-feira, outubro 04, 2006

A Letra O

Foto by Carla Maio


O é de ódio,

Regado pela água da ignorância populaça

E alimentado pelo vento de discriminação,
Cresce como uma erva daninha.
Nos seus limites, explode em fúria e escorre de vermelho.
Só o Amor o elimina com o seu sopro quente.