domingo, novembro 19, 2006

A Chave da Comunicação

foto retirada daqui


(Continuação do post
"O primeiro vestuário dos ouvidos")

Os meus pais e eu, com um ano de idade e poucos meses, ainda estávamos na cidade londrina.

Apesar de estarem um pouco esperançados com os meus primeiros aparelhos, das novas emoções que sentiram quando dei os primeiros passos, das surpresas que tiveram com as minhas reacções face aos novos ruídos, o choque ainda estava bem patente neles, encravado na pele como uma sujidade que seria preciso raspar e retirar com uma esponja.

Não era tudo. Eu continuava a ser surda e seria-o para sempre. Ainda era um imenso fardo para as suas preocupações:

O que vamos fazer com a nossa menina? Como vamos comunicar com ela? Como podemos transmitir-lhe todas as informações? interrogava o meu pai, sempre controlado, com uma mão, enorme e peluda, a pressionar o seu queixo careca, enquanto a minha mãe me fitava com um coração deveras despedaçado e culpado, pegando na minha mãozinha encolhida em bola, como querendo salvar-me do abismo silencioso ou dar-me as cores da Vida, dizendo a si própria “como vou contar à minha bebezinha as histórias de embalar na hora de deitar? Que faço?? É tão viva, tão perspicaz, como os olhitos observam tudo querendo aprender…”.

Os meus pais ainda se sentiam perdidos. Era como se estivessem no deserto. Encontravam-se rodeados de dunas silenciosas e ameaçadoras que libertavam um calor sufocante. As perguntas, que bombardeavam os seus espíritos, eram poeiras de areia erguidas pelo vento e tornavam tudo menos nítido. As dúvidas atrozes e a ausência de respostas ressequiam a sua garganta. O meu futuro parecia consistir num vazio, um beco sem saída… O horizonte do deserto mostrava ser uma circunferência, uma linha circular fechada e uniforme. Estavam no centro do nada. Que rumo deveriam seguir? Leste? Oeste? Norte? Sul? Todas direcções acabavam ali no meio do deserto. De repente, o sol falou... Era a voz do médico Otorrino, a dizer que havia um oásis algures no deserto, um bom centro de orientação para os pais, que lhes dariam todas as informações e apoio. Fortalecidos então por novas esperanças, continuaram a andar até que… avistaram um oásis!

O oásis ficava numa sala de apoio à reabilitação auditiva de bebés no Hospital de Londres, onde uma enfermeira pedagoga lhes deu muita água. Ficaram aliviados e saciados de respostas. Afinal, havia um caminho possível… Havia uma porta de comunicação que me transbordaria ao mundo deles e crescer com devidos conhecimentos da Vida. A salvadora deu-lhes livros, onde estavam registadas as pistas para encontrar uma chave de comunicação e abrir aquela porta…

Com imensa luta e persistência, acima de tudo Amor, encontraram a bendita chave e a porta foi aberta. E assim, os meus pais e eu, minúscula ao colo entre dois, seguimos pelo novo caminho que se avistava risonho e iluminado...


(As emoções dos pais aqui relatadas são frutos da minha imaginação. Na verdade, os meus pais não encontram palavras para transcrever estes momentos bastantes fortes, só os dois sabem o que sentiram. Eu apenas tentei compreendê-los, observando as fotos tiradas em Londres e “escutando” os resumos vagos e soltos dos progenitores.)


quinta-feira, novembro 02, 2006

As Maravilhas do Xadrez

foto retirada daqui

O céu sorria azulado e limpo para aquele dia. No campo de férias,
anunciava-se o 4º dia de Torneio de Damas, Xadrez e Dominó.

Os jovens vagueavam numa estreita categoria etária dos 12 aos 14 anos. Aqueles que chegaram às meias-finais, andavam ansiosos, levemente sonhadores, com o desejo traçado no reflexo dos seus olhos: “vou ser vencedor”. O meu coração, o único surdo do campo de férias, andava com uma ansiedade ensurdecedor pela próxima jogada das peças de Xadrez.

Já tinha vencido três rapazes.

O último jogo foi belo e emocionante. O adversário tinha o dobro da minha altura e era dois anos mais velho que eu. Quando começámos o jogo, ele mostrou a sua força surpreendente. Apanhou todos os meus pequenos peões. Continuou a capturar: um cavalo, mais outro… A sua masmorra ia-se enchendo de prisioneiros, dos mais pequenos aos médios, enquanto a minha se encontrava quase oca. Descortinei logo o seu plano: tendia limpar todas as peças que defendiam o meu Rei para o pôr indefeso. Também reparei que andava à toa como um touro tresloucado a perseguir atrás da manta vermelha. Atacava o que aparecia à frente. Isto permitiu-me elaborar uma nova estratégia. O seu Rei encontrava-se posicionado perigosamente num canto do tabuleiro, tendo apenas duas saídas para escapar. Os seus defensores estavam longe e ocupados a guerrear os meus soldados. Vedei então uma saída do Monarca oposto, colocando o meu guerreiro – o digno príncipe - a uma distância considerável e semi-oculta. O adversário acompanhou este movimento, mas ignorando o seu objectivo. Tinha outra prioridade: a minha Torre. Caçou-a. E, a seguir, deslizei a mais poderosa e altiva de todas as peças – a Dama. Todo o meu corpo bombardeava atordoado de vitória…

“Ganhei!!!”, gritei para dentro de mim. O rosto do opositor ficou lívido, todo o sangue fora sugado. Arqueou-se respirando com dificuldades... O seu Rei estava encurralado! Sacudiu a cabeça, repetidas vezes, tentando dissimular esta visão traiçoeira. No entanto, a verdade sanguinária “Xeque-mate!” não desaparecia dali. Estava mesmo vencido, acabado. Suspirou febrilmente.

Quando me levantei, o meu monitor Z.P. pegou-me e elevou-me ao ar. O seu olhar verde brilhou de estrelas. Exclamou que este jogador era dos bons. Os meus colegas de equipa também congratularam-me com o mesmo sentimento empapado de cumplicidade e camaradagem.

Quando cheguei à sala de torneios, os materiais de Xadrez, Damas e Dominó já estavam distribuídos nas mesas. Quem seria o adversário seguinte? Tão perigoso quanto os três anteriores? Fui ao painel, onde estava afixado o mapa dos participantes, para ver quem era. O meu queixo descaiu de incredulidade…

Uma rapariga de estatura média, de olhos verdes e cabelos castanhos lisos que chegavam até aos ombros, sentou-se à minha frente. Antes de iniciarmos a jogada, estudei a sua fisionomia, cada traço do seu rosto, cada estímulo das suas reacções. Esta observação corporal é indispensável para antecipar as suas intenções de ataque no decorrer do jogo. “Está segura e firme. Deve jogar bem…”, retorqui em silêncio para os meus botões. Face a esta conclusão, os meus nervos entraram em alerta.

Começámos. Uma peça, outra peça. Ataques e defesas semelhantes. Afinal, era uma adversária extremamente difícil, tripliquei o meu esforço mental, criando umas novas técnicas de avanço e de luta. O meu cérebro latejava a cada minuto perante obstáculos e ataques imprevistos. A rapariga também percebeu que eu era exigente e concentrou-se mais. O jogo foi assim ficando cada vez mais complicado.

No momento em que estávamos quase no fim do jogo, a empatarmos, alguns jovens e monitores, apercebendo da complexidade do jogo, instalaram-se nas cadeiras, um a um, perto da nossa mesa, fazendo de público. Este monte de vultos, em constante movimento como uma brisa, desconcentrou-me, fez com que não reparasse numa peça traiçoeira e…perdi!

Foi um jogo e tanto, que durou uma hora! Doía-me a cabeça de tanto pensar, de dar as voltas aos meus neurónios.

O Z.P. veio ter comigo, com um ar de quem já estava à espera de que eu iria perder.
- Então?
- Perdi! Distraí-me, não vi uma peça! – queria acusar o “público”, da sua invasão incómoda, porém contive-me.
- Mas jogaste muito bem. Sabes porque?
- Porquê?
- Porque a N. já joga o Xadrez em campeonatos nacionais e internacionais.
- Uauu…- fiquei muda durante uns segundos, assimilando cada palavra que lera nos lábios do Z.P. - Então, era por isto que o jogo foi muito difícil!
- E tu estiveste quase a empatá-la! Estás a ver? Jogaste muito bem! Parabéns! – o Z.P. deu-me um forte e incentivo abraço.


(Assim ficou a recordação, perpetuada nas minhas memórias até hoje. O meu pai ensinou-me as maravilhas do Xadrez quando eu tinha 9 anos. Fiquei imensamente cativada pelas peças, pelo mistério e elegância que delas surtiam. O jogo dava-me o poder de raciocinar, lutar e defender. No ano anterior deste episódio, ganhei uma medalha de 2ºlugar.)