sexta-feira, dezembro 29, 2006

Surdas Profundas e Oralistas

foto by SilenceBox

As vagas do mar erguem-se assombrosas, tecendo teias de espuma iradas, sob o olhar negro e diabólico do céu e, em seguida, caem numa queda vertiginosa contra a superfície marítima causando um impacto explosivo. Sou então expelida violentamente, em cambalhotas, para o fundo do mar, sendo o meu corpo sacudido pelas pancadas ensurdecedoras.

Uma vontade de ferro, que há dentro de mim, impulsiona-me a nadar, persistentemente, usando todos os esforços possíveis, para emergir. Ar puro, tão vívido e fresco, envolve-me! Cuspo a água salgada engolida acidentalmente e respiro profundamente.

Relâmpagos rebentam e gritam. São vozes injustas e ácidas, ensopadas de malvadez e ignorância! “Como é possível escreveres tão bem se és surda profunda?”; “Tu não podes ser surda profunda pois falas oralmente, deves ser surda moderada!”; “Tu licenciada? Só deves ter feito exames especiais!”; “Como és surda profunda, a tua língua materna deve ser Língua Gestual!”… Fios de vozes, parecendo intermináveis, enrolam-me dolorosamente. Ainda para dar ênfase a este tormento, como fez o Adamastor destruindo caravelas heróicas dos Descobrimentos, atiram ondas eléctricas provocando um caos desumano ao oceano.

Incho de fúria e de indignação até ao limite, dando braçadas e gritando:
- Parem de me atormentar! O próprio Deus sabe que escrevo bem. Tenho relatórios que comprovam o grau profundo da minha surdez! Segui o Ensino Normal com sucesso, fiz testes e exames idênticos aos ouvintes e, inclusive, exames nacionais para a admissão Universitária! A minha língua materna é a Língua Portuguesa! Estão entendidos, relâmpagos?!

Em resposta, o mar ronca ironicamente - Não pode ser! Não é possível! - , ruge gargalhando ondas! Mais uma vez, sou atirada para o fundo abismal.

Neste preciso momento, em que as luzes tempestivas iluminam a escuridão, detecto uma silhueta esguia a furar o mar, formando uma coluna atrás de si. Dirige-se na minha direcção. Uma mão delicada e grande estende-me, agarro-a e sinto um forte puxão que me conduz para o exterior.

Novamente um jacto de água sai da minha boca, tusso para poder respirar. Pestanejo várias vezes para dispersar a névoa que cobria a minha visão. Aos poucos, em câmara lenta, surge um rosto feminino, emoldurado pelos cabelos castanhos, compridos e lisos, com um par de olhos castanhos cintilantes. Que pupilas tão intensas e profundas! Sei imediatamente o que vê e como escuta. Toco na sua bochecha rosada com a minha mão direita, invade-me logo uma sensação protectora e cândida. Sinto, sob os meus dedos, a dimensão do seu Ser, a riqueza do seu Eu, a sua Existência completa… Está dito, visto e inteiramente compreendido. O nosso silêncio comum.

- Tu… também?! - Interrogo oralmente. Uma pergunta curta mas carregada de significado que diz tudo.

As portas da sua mente abrem-se, par a par, e o seu interior faz-me voar como Peter Pan. Visualizo estrelas mágicas que são palavras silenciosas da sua Essência, um círculo de ilhas férteis que são momentos por que enfrentou e sentiu, o rio de Vida transparente e enriquecido que saiu ileso de obstáculos. Após uma viagem em telepatia, aterro-me na realidade.

Ela pronuncia, aquiescendo, oralmente:
- Sim, eu também…

Uma surda profunda como eu! O mesmo código, a mesma comunicação. Uma oralista como eu! Até a educação e a integração são semelhantes. Possui uma cultura tão vasta e rica quanto a minha.

A luz e a força entrelaçam-nos fortemente e juntas rodopiamos até ficarmos suspensas em cima do mar. A agitação da maré começa então a serenar e o Sol, com o seu sopro quente, varre as crueldades da tempestade. Uma brisa sussurrante e reconfortante afaga os nossos rostos molhados e aquece os nossos corações. Acreditamos uma na outra. Somos a mais pura veracidade, somos surdas profundas e oralistas.

Como reflexo da magia do nosso encontro, o arco-íris pincela sobre o painel azulado do céu com as suas aguarelas coloridas: nós existimos. E assim fica gravado. Milhares de gaivotas grasnam aos ventos, levando a nossa mensagem mútua: nós devemos ser respeitadas e os nossos direitos também reconhecidos!