sexta-feira, junho 02, 2006

Era uma vez uma Gaivota…

Foto by R.

À minha frente, o rio corria apressado em direcção à boca do mar que o engolia. As bolhas espumosas saltavam, espalhando um cheiro agradável, uma fragrância adocicada e salgada. Por detrás, erguiam-se majestosas as montanhas, enormes e cobertas de árvores, derramando o seu verde fulgurante sobre o azul do mar.

O vento dançava ao acaso. Vinha dali ou vinha de outro lado, parecendo festejar o encontro entre a água salobra e a água marítima.
Tudo exalava purificação. Oferecia-me um bem-estar interior, a sensação de estar deitada em cima de um arco-íris. Depois de contemplar este ambiente, pus-me a beber rios de palavras de um livro, com um sorriso sereno estampado no coração.

De súbito, no meu lado direito, um estranho vulto aterrou sobre a areia fina e acastanhada. Senti-o pelo canto do olho. O seu movimento invulgar e insistente perturbou a minha leitura e fez-me levantar os olhos até atingi-lo.

Era uma gaivota! Encontrava-se tão próxima, a menos de 2 metros. Até se conseguiam ver os pormenores das penas.

Fiquei imóvel, não me atrevendo a mexer um único músculo, observando-a deslumbrada. Era tão branca como a cor de algodão, tinha uma postura digna de uma ave independente. A natureza esculpiu-a com perfeição! Deixei-me ficar assim, em transe, durante um tempo, gravando docemente aquela imagem, até que me sobressaltei com o toque de um dedo sobre o meu braço esquerdo, como se tivesse sido tocada ao de leve pela queda de uma minúscula pena.

Virei-me lentamente para não assustar a gaivota. Os meus olhos encontraram com os da minha amiga. Não foram precisas palavras. Também ela estava encantada com esta magnífica visitante.

O tempo passou. Tínhamos agora de nos mexer, de respirar com o ruído, uma vez que já nos começávamos a sentir paralisadas de a fitar tanto.

Pus-me a sussurrar à minha amiga:
- Esta gaivota é tão corajosa para estar ao pé de nós.

Ela assentiu ao meu comentário. Voltámos a olhá-la. A gaivota estava a observar-nos alerta mas não se esquivou ao mínimo som da minha voz. Fiquei espantada, arqueando o meu sobrolho grosso, quase o meu queixo tocava o meu pescoço de tão caído estava! R. também se apercebeu do estranho comportamento. A ave não tinha aspecto adoentado. Não coxeava. As asas estavam em excelentes condições, fortemente lisas e correctamente arrumadas nos seus sítios.

Começámos a pensar. Será que…?

Os lábios de R. estreitaram-se num apertado círculo, soprando dióxido de carbono. Deste modo, apercebi-me de que estava a assobiar. Um bombástico som capaz de atemorizar qualquer animal. Fiquei suspensa, quase encolhida, um pouco receosa ante a perspectiva de a assustar.

A gaivota continuou ali como se nada fosse!

Olhei para aqueles olhos pretos. Tão pequeninos, mas bem abertos. Ávidos e perspicazes. Foi então que reparei que havia algo diferente nela. Mexia excessivamente a cabeça, para um lado e para o outro, e também para trás, repetidas vezes.

Falei alto, completamente exaltada, com esta inesperada descoberta:
- A gaivota é surda!

O que fazia ali sozinha? Encontrava-se distante de uma multidão de gaivotas que sobrevoava freneticamente, fazendo piruetas, por cima da Foz. Estava excluída da comunidade. Abandonada ou ignorada, sem outra gaivota para companhia.

Perante esta verdade, o meu interior jorrou em gotas de água. As lágrimas silenciosas de dor. A gaivota era um reflexo de mim própria!


(Esta gaivota era jovem, sabia-o pela cor do seu bico, era preto. Passou quase um ano desde que a encontrei. Será que agora é uma esplêndida gaivota? Será que já encontrou companhia? Como gostava de saber…)