Dia X e Dia Y
Dia X (Com 14 anos de idade)
Entrei apressada na papelaria, transpirando e arfando por causa da corrida, com um enorme maço de papelada a pesar-me por debaixo do braço.
Aproximei-me da fotocopiadora e entreguei os apontamentos à funcionária que já me conhecia desde criança.
- Boa tarde! 5 cópias de cada folha, por favor.
Uma desconhecida aproximou-se de mim. Intrigada, virei-me e olhei-a de frente. Neste preciso momento, os seus lábios afloraram-se:
- Desculpe, a menina é italiana?
Esta interrogação lançou-me uma baforada de vento que me abanou toda. “Eu, italiana?! Que ironia…”, pensei. Os tentáculos pretos da complexidade, que se encontravam adormecidos, completamente enrolados, num sítio oco e interior do meu corpo, desentorpeceram-se pelo barulho inconveniente deste pensamento. Meios desnorteados, agitaram-se ferozmente e despejaram-me a tinta negra de vergonha: “Não vais dizer que és surda! Diz que sim!”.
- Sim… - escapou-se-me uma afirmação sussurrada e bastante quebradiça…
A senhora, em vez de se afastar de mim, tornou-se mais amável e pôs-se a tagarelar devagar:
- Itália é um país lindo! Já fui…
Fiquei imóvel, de olhos arregalados, escutando com a minha visão cada palavra que se formava na sua boca, sentindo deslumbrada como se estivesse a ser hipnotizada por uma voz apaziguadora. Os pormenores mágicos, os monumentos grandiosos e únicos de Itália. A senhora era uma verdadeira apaixonada por este País.
- A menina é de onde?
De repente, a fantasia foi-se violentamente e despertou-me para a terrível e atormentada realidade. “E agora? Terei que dizer a verdade à senhora?”, perguntei em silêncio aos meus fantasmas que continuavam a brandir os seus tentáculos.
Felizmente, a funcionária salvou-me a tempo, entregando-me as fotocópias.
- Foi um prazer falar com a senhora mas, desculpe, tenho que ir! Estou atrasada! Boa tarde!
Ofereci-lhe um sorriso visivelmente grato, por este tempo curto mas bem precioso. E voei pela porta fora, com o coração endoidecido e embebido de remorsos.
Dia Y (Actualidade)
Sob as nuvens carregadas de cinzento, assobiando uma ameaça de provocar uma chuva torrencial a qualquer momento, caminhei em passos lentos e descontraídos. Passei por um grupo de pessoas. Duas mães acompanhadas de duas filhas.
Uma destas senhoras veio na minha direcção, retirando uns folhetos dentro da pasta negra que levava na mão. A pequenita, segurando a saia da mãe, observava o procedimento desta, quieta com uma inocência estampada no rosto e de respiração suspensa.
A mãe começou a atirar-me correntes de sons, a uma velocidade alucinante, que me deixou sem jeito e atordoada. Quando já estava quase no fim da explicação oral, é que consegui soltar a minha voz:
- Desculpe… Sou surda! Fale devagar.
Perante a minha veracidade, já amadurecida pelos anos passados, liberta de complexos e orgulhosamente firme, a mãe ficou empalidecida e apatetada, engoliu a fala aos trapalhões e começou a fazer mímicas. Apenas a apontar aos folhetos e nada mais. Entregou-mos, pegou a mão da filha e foram-se embora.