terça-feira, junho 28, 2005

A Queda do Dominó

Saltei de pediatra em pediatra, como se fosse uma bola de ping-pong, de um lado para outro. Fui submetida a todos os tipos de exame.

Cada exame era como uma peça de dominó, uma caía e passava para outra peça em pé, e assim por diante. Desenhava-se uma linha branca sem rumo, solta e perdida.
As peças continuavam a cair e provocavam voltas e voltas… e voltas de ansiedade aos meus pais. Era interminável a aflição de ver vir a última peça chegar.

Até que, um dia, uma resposta gritou e fez com que a última peça tombasse com um estrondo! A ansiedade contida e acumulada ao longo desta linha branca explodiu e originou uma chuva gelada e paralisante no coração dos meus pais!

Tinham-me nas suas mãos mergulhada no silêncio...

Como isto era possível?!

Na minha árvore genealógica não existe um ramo surdo e logo eu tinha que ser uma excepção!

sábado, junho 25, 2005

Berço Silencioso

Nasci numa manhã cinzenta e fria, ainda o aroma natalício pairava no ar, com uma força incalculável e apressada.
Os meus pulmões, em tamanho minúsculo, acordaram com o cheiro da Vida e sugaram as primeiras moléculas da atmosfera. As minhas cordas vocais, estimuladas por bolhas vibrantes, abanaram e libertaram uma música gritante de choro. Contudo, foi um choro mascarado que ocultou a surdez…

Fui um berço de felicidade para os meus pais e uma nova luz para a minha irmã, com 4 anos de frescura. Os dois pares de olhos castanhos e o par de olhos verdes postos em mim, com palpitações de carinho, contemplavam um bebé saudável com pequenos músculos cheios de vitalidade e um olhar curioso e sedento da Vida. Até ali tudo parecia em paz…
Esta felicidade colorida e musical durou apenas 4 meses.

Um aspirador em melodia berrante, um secador do cabelo num vendaval de ruídos, uma queda acidental de móveis, a dança inconstante das vozes, o bater de palmas frenético. Quando um comboio destes sons percorria o ar e chegava ao berço onde dormia não me assustava, nem sequer reagia. Eu dormia embalada pelo sono sereno, nas nuvens de bebé.
Foi então que a hesitação familiar desabrochou e deu lugar a várias interrogações e a vários receios…

O que é que eu tinha?! Preguiçosa? Dorminhoca? Adoentada?

sábado, junho 18, 2005

Uma Viagem de Vertigens

Fiquei num Camarate do 1º piso. Sentei-me numa cadeira, despida e áspera, sem suportes para os braços, que estava colocada na 1ª fila. Era a minha primeira vez no Coliseu, era uma nova sensação!

O Coliseu exalava um perfume fantasmagórico… Sugou-me para os tempos antigos e visualizei aquelas mulheres com vestidos de baile, luvas de rede e leques de penas, e aqueles homens com os seus fatos elegantes, bengalas finas e chapéus altos colocados no seu colo. Entre olhares dos homens e das mulheres, passava, à luz de estrelas, uma corrente de códigos silenciosos.
Quando despertei desta hipnose breve e inesperada, os espectadores antigos foram imediatamente varridos pelos espectadores da era moderna, vestidos de calças de ganga, camisas às riscas ou lisas, t-shirt de várias cores, saias curtas ou compridas, blusas largas ou justas.

As luzes sucumbiram e a cortina de veludo vermelho subiu.

Os “gatos” surgem, lentamente, vindos da escuridão salpicada de estrelas. No mesmo instante, as minhas expectativas quebraram e caíram em água fervente. Evaporadas formaram uma nuvem de desolação total. Os contornos destes “gatos” eram do tamanho de formigas, uns pontos minúsculos. Não se viam as suas expressões “felinas”, os seus bigodes, os olhos, as garras, e até mesmo as caudas!

Havia um ecrã rectangular, por cima do palco, para traduzir as canções do miar e do ronronar destes “gatos”. Não me serviu de nada…
Explodia dali um barulho infernal que fazia exaltar a minha visão. As letras luminosas das palavras, que por ali passeavam, saltitavam em montanhas irrequietas!

Olhando para aqueles vultos indistinguíveis os meus olhos, fatigados pela neutralidade de movimentos, fecharam-se e entraram no sono... Lá dentro, os ruídos ainda soavam alto, sob marteladas uniformes e contínuas, sem ritmos pausados. O meu corpo ainda vibrava ao impacto destas ondas musicais. O sono estava longe de ser embalado…
Até que, de forma inesperada e imprevista, os ruídos foram bruscamente travados. O chão e a cadeira fugiram sob os meus pés e quase caí estendida ao acaso, sem apoio para me segurar!

As luzes acenderam com um clic imaginário e as pessoas entusiasmadas levantaram-se das suas cadeiras. Observei as suas caras e verifiquei que estavam a ponto de se desfazerem em lágrimas, visivelmente maravilhadas, arrepiadas de comoção! Bateram palmas, repletas de electricidade, de encanto, de emoção. Adoraram!

Menos eu…

Este espectáculo, para mim, foi uma viagem ao rodopio de ruídos, mais propriamente, uma viagem de vertigens! Não vi as danças mágicas das suas expressões, o ronronar dos seus movimentos, as cores da maquilhagem felina… não “ouvi” as suas músicas.

terça-feira, junho 14, 2005

A Música dos Movimentos

Não sei o que é sentir a música de olhos fechados. Não vejo por que existe algo de mágico nesses sons, originados pelos cantos e pelos instrumentos musicais como o piano ou a guitarra. O que de mágico tem a música para as pessoas chorarem e se encantarem? Os sons, tanto os graves como os agudos, somente os sons, não me acarinham nem estimulam as minhas emoções.

Mas vejo outra música que também é linda de se sentir, que me faz vibrar e que me enche de cócegas! Essa música está aqui, ali e além, por todos os lados.

A dança do corpo, o ávido pestanejar dos olhos, o rasgar dos sorrisos, a queda da chuva, as carícias das ondas, o aceno das folhas verdejantes, as pétalas coloridas a abrirem-se, a corrente brilhante dos rios, a liberdade das aves em voo, os reflexos espelhados na água, as sombras projectadas ao acaso…

Tudo tem música! Cada movimento mínimo liberta uma dose de música.

Cada cor tem a sua nota musical! O azul é a música do céu e do mar. O amarelo é a música dos raios de sol. O castanho é a música do café. O verde é a música dos olhos da minha mãe.

quinta-feira, junho 09, 2005

Uma Viagem ao Passado


«Os meus 14 anos estão à espreita, ainda frágeis e frescos.

Encontro-me, em frente de um espelho, a articular sete algarismos: três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero.
Uma vez que não distingo a minha própria voz, recorro à técnica utilizada nas sessões da Terapia de Fala. Leio os meus lábios reflectidos no espelho, verificando, deste modo, se liberta alguma falha na minha articulação, se a minha língua ondula correctamente, se os meus lábios abrem num O cheio ou num S fechado…
Repito estes números mágicos, assim robótica, com uma persistência acalorada.
- Mãe, ouve-me! Diz-me se estou a dizer bem. Três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero!
- Muito bem!
- Vou, então, ao Clube de Vídeo! Sou capaz disto!
Encho-me de coragem, respirando golfadas de ar como que para me alimentar das forças invisíveis dos Deuses.

Enquanto me aproximo do Clube de Vídeo, o pânico, o meu maior inimigo, começa a apoderar-se de mim envolvendo-me dos pés à cabeça… O meu coração martela com uma força de tempestade, o suor escorre frio e um manto nebuloso desce ofuscando os meus olhos…
Mas, as Suas mãos poderosas, misteriosas e transparentes, empurram-me para frente. Uma voz quente e protectora sussurra no meu interior - um sussurro baixinho mas firme - que tenho que enfrentar estes temores… “Fugir não é a melhor solução!”.

Aproximo-me, então, do balcão e está lá uma nova empregada que me pergunta, monotonamente, pelo número de sócio. Aclaro a minha voz tossindo, relembrando-me do treino, e respondo com visível esforço:
- Três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero.

Perante a exposição da minha voz, a empregada petrifica-se! O seu queixo queda num terror gelado, os músculos faciais contraem-se tensos, o olhar torna-se vítreo… A aura negativa dela atravessa-me através dos poros da minha pele e fico assustada! Ela não percebeu nem um número pronunciado, ficou apavorada!

O choque deste susto aperta a minha garganta libertando labaredas de vinagre e, em poucos segundos, começo a ver tudo embaciado pelas lágrimas que teimavam em vir à superfície dos meus olhos. Esta dor provoca-me um desejo de me esfumar dali, de ser transparente para que ninguém me veja, para que ninguém me ouça… “É tão difícil ser Surda!” »


Fui instintivamente forçada, desde muito cedo, a ter uma consciência profunda de que a minha voz não era bonita e agradável de se ouvir.

Até agora, a minha voz mantém-se, inalterável e nasalada, uma voz de Surda. Ainda, hoje, os desconhecidos olham-me assustados ou confusos. Mas já não sinto tanto pavor como sentia outrora.

Com o tempo, durante a fase da adolescência, apercebi-me de que só a minha família e os amigos mais próximos é que me compreendiam.

É uma questão de tempo, pode até demorar anos, para que as pessoas se habituem à minha voz.

segunda-feira, junho 06, 2005

Letras&Letrias

No último sábado, ao fim da tarde, fomos à Feira do Livro.
O Sol já fraco, ainda a jorrar calor, uma massa de gente preenchia os canais entre os pavilhões, os livros ali estavam, perigosamente à nossa mão, em filas convidativas para os comprarmos…

Trouxe um livro maravilhoso para o José Jorge Letria autografar!

Lá estava ele sentado numa mesinha redonda com a serenidade de escritor e com ar de quem adora gatos. Infelizmente, não estavam os felinos em seu redor, aninhados aos seus pés. Dar-lhe-iam um ar ainda mais digno do amor destes animais...
As suas mãos fortes seguraram “Letras&Letrias” e a caneta voou a miar, mesmo a miar como os gatos, e desenhou aquelas letras na primeira página que me fizeram sorrir.
O meu Muito Obrigada! Este é o momento para voltar a ser lembrado.

Uma das frases, deste livro, conquistou o meu coração:
“O Silêncio é uma música que emudeceu de espanto”

sábado, junho 04, 2005

Troca de Palavras Silenciosas

Na hora em que rebentava uma ondulação espumosa vinda do mar infantil espalhado por todos os cantos da Escola, encontrava-me a caminhar em direcção à sala de professores e, pelo caminho, cruzei-me com uma colega. Trocámos umas palavras num silêncio habitual.

Inevitavelmente, como seria de esperar, caímos sob um alvo de olhares dóceis das crianças surdas. Elas sentem-se protegidas com a presença dos seus “iguais” adultos.

Uma destas crianças, uma menina de nove anos, com cabelos doirados, pequenos olhos de um azul límpido mas salgado de traquinice e mimos, não resistiu a sua curiosidade inocente… “Infiltrou-se” na conversa com um sorriso embaraçado, meio interrogativo, e gesticulou as mãozinhas dando vida à sua sede de saber, expondo um enorme ponto de interrogação sobre a nossa comunicação.

Eu e a minha colega estávamos a conversar, com as mãos dormentes e imóveis, mexendo e articulando apenas os nossos lábios. Duas pessoas adultas, ambas surdas profundas, a comunicar desta forma, era para ela uma descoberta invulgar, mágica e até mesmo inimaginável!