quinta-feira, setembro 15, 2005

Os Sorrisos de Bege




«Atrás é a escuridão fora do pensamento. É o sítio onde o som se junta, o som que não é para ela ouvir.» - “Ensurdecer” de Francis Itani (pág. 73)



Quando as pessoas falam, as palavras invisíveis saem das suas bocas sob ondas sonoras, e entram para os meus aparelhos com graciosidade. Estes com a perícia das suas forças eléctricas e mecânicas, abraçam estas ondas e empurram-nas para o interior dos canais auditivos.
Os sons das palavras, ainda inteiros e de mãos dadas, escorregam e aterram na base dos “caracóis” dos meus ouvidos. Até aí, os sons quebram-se em várias direcções como a queda de uma gota gigante que se desfaz em vários e minúsculos pingos soltos. As sílabas soltam-se da sua ordem, trocam-se e formam uma nova fila de sons tortuosos.

Ouço ruídos indecifráveis e entrecortados, apenas, burburinhos altos e baixos. Enquanto os agudos não entram, os graves explodem dentro de mim.

Se falarem comigo por detrás das minhas costas, não vou perceber. Ouço vozes mas não saberei de quem é a voz. Ouço vozes que saem ocas e raspadas como se fossem barulhos sem letras.

Os lindos aparelhos não me levam a identificar os ruídos mas, por outro lado, têm a sua utilidade. Embalam-me como uma música sussurrada; dão-me carícia de sons, uma pequeníssima porção do que é ouvir, uma minúscula chama ruidosa que me ilumina.

Os aparelhos são uma parte de mim, são sorrisos de bege que fazem os meus ouvidos sorrirem e ficarem quentes de protecção.