quinta-feira, junho 09, 2005

Uma Viagem ao Passado


«Os meus 14 anos estão à espreita, ainda frágeis e frescos.

Encontro-me, em frente de um espelho, a articular sete algarismos: três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero.
Uma vez que não distingo a minha própria voz, recorro à técnica utilizada nas sessões da Terapia de Fala. Leio os meus lábios reflectidos no espelho, verificando, deste modo, se liberta alguma falha na minha articulação, se a minha língua ondula correctamente, se os meus lábios abrem num O cheio ou num S fechado…
Repito estes números mágicos, assim robótica, com uma persistência acalorada.
- Mãe, ouve-me! Diz-me se estou a dizer bem. Três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero!
- Muito bem!
- Vou, então, ao Clube de Vídeo! Sou capaz disto!
Encho-me de coragem, respirando golfadas de ar como que para me alimentar das forças invisíveis dos Deuses.

Enquanto me aproximo do Clube de Vídeo, o pânico, o meu maior inimigo, começa a apoderar-se de mim envolvendo-me dos pés à cabeça… O meu coração martela com uma força de tempestade, o suor escorre frio e um manto nebuloso desce ofuscando os meus olhos…
Mas, as Suas mãos poderosas, misteriosas e transparentes, empurram-me para frente. Uma voz quente e protectora sussurra no meu interior - um sussurro baixinho mas firme - que tenho que enfrentar estes temores… “Fugir não é a melhor solução!”.

Aproximo-me, então, do balcão e está lá uma nova empregada que me pergunta, monotonamente, pelo número de sócio. Aclaro a minha voz tossindo, relembrando-me do treino, e respondo com visível esforço:
- Três, dois, cinco, cinco, seis, oito e zero.

Perante a exposição da minha voz, a empregada petrifica-se! O seu queixo queda num terror gelado, os músculos faciais contraem-se tensos, o olhar torna-se vítreo… A aura negativa dela atravessa-me através dos poros da minha pele e fico assustada! Ela não percebeu nem um número pronunciado, ficou apavorada!

O choque deste susto aperta a minha garganta libertando labaredas de vinagre e, em poucos segundos, começo a ver tudo embaciado pelas lágrimas que teimavam em vir à superfície dos meus olhos. Esta dor provoca-me um desejo de me esfumar dali, de ser transparente para que ninguém me veja, para que ninguém me ouça… “É tão difícil ser Surda!” »


Fui instintivamente forçada, desde muito cedo, a ter uma consciência profunda de que a minha voz não era bonita e agradável de se ouvir.

Até agora, a minha voz mantém-se, inalterável e nasalada, uma voz de Surda. Ainda, hoje, os desconhecidos olham-me assustados ou confusos. Mas já não sinto tanto pavor como sentia outrora.

Com o tempo, durante a fase da adolescência, apercebi-me de que só a minha família e os amigos mais próximos é que me compreendiam.

É uma questão de tempo, pode até demorar anos, para que as pessoas se habituem à minha voz.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá!!
Como te compreendo.. mas penso que não é só a família e os amigos que compreendem.. eu também compreendo. Tenho uma colega, que já te falei, ela também tem uma voz assim retorcida.. mas perceboa-a perfeitamente.. ás vezes nem precisamos de falar alto.. nós, ambas, falamos quase em silêncio.. e percebe-se perfeitamente.. o que acho incrivel. Sinto-me bem com ela..

O resto.. sim, eu também ás vezes entro em pânico quando quero explicar uma coisa e não consigo, tenho problemas em linguagem.. ou seja.. em frases bem construidas.

Também, por vezes, aconbtece que quero perceber certas coisas e não percebo.. fico um bocadinho mal por isso.. mesmo usando aparelhos..

12:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

"Fugir não é a melhor solução", tens razão...
E por isso andas pela blogosfera a mostrar o teu lado, a tua vida. Continua, que eu continuo a passar por ca, ok?

Bjo, ;)

7:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

ola
ja passei por aki algumas xs mas so hoje e k tive tempo de comentar. tb sou surda. nao totalmente. oiço apenas de um ouvido e o outro esta a 30 decibeis....
tambem tive varios problemas de voz. trocava muito as silabas e as vezes quando nao me sinto bem ainda troco. tem mais confiança em ti propria e vais ver que vais conseguir ter uma voz perfeita ou quase perfeita. gostava tanto de te conhecer, tanto a ti como a mafalda freire. nunca conheci ninguem com problemas de ouvidos. mas já e muito bom ler os vossos textos. tens uma escrita formidavel. espero que a voz fique igual :D
bjus****

11:48 da tarde  

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