(Continuação do post "O primeiro vestuário dos ouvidos")
Os meus pais e eu, com um ano de idade e poucos meses, ainda estávamos na cidade londrina.
Apesar de estarem um pouco esperançados com os meus primeiros aparelhos, das novas emoções que sentiram quando dei os primeiros passos, das surpresas que tiveram com as minhas reacções face aos novos ruídos, o choque ainda estava bem patente neles, encravado na pele como uma sujidade que seria preciso raspar e retirar com uma esponja.
Não era tudo. Eu continuava a ser surda e seria-o para sempre. Ainda era um imenso fardo para as suas preocupações:
— O que vamos fazer com a nossa menina? Como vamos comunicar com ela? Como podemos transmitir-lhe todas as informações? — interrogava o meu pai, sempre controlado, com uma mão, enorme e peluda, a pressionar o seu queixo careca, enquanto a minha mãe me fitava com um coração deveras despedaçado e culpado, pegando na minha mãozinha encolhida em bola, como querendo salvar-me do abismo silencioso ou dar-me as cores da Vida, dizendo a si própria “como vou contar à minha bebezinha as histórias de embalar na hora de deitar? Que faço?? É tão viva, tão perspicaz, como os olhitos observam tudo querendo aprender…”.
Os meus pais ainda se sentiam perdidos. Era como se estivessem no deserto. Encontravam-se rodeados de dunas silenciosas e ameaçadoras que libertavam um calor sufocante. As perguntas, que bombardeavam os seus espíritos, eram poeiras de areia erguidas pelo vento e tornavam tudo menos nítido. As dúvidas atrozes e a ausência de respostas ressequiam a sua garganta. O meu futuro parecia consistir num vazio, um beco sem saída… O horizonte do deserto mostrava ser uma circunferência, uma linha circular fechada e uniforme. Estavam no centro do nada. Que rumo deveriam seguir? Leste? Oeste? Norte? Sul? Todas direcções acabavam ali no meio do deserto. De repente, o sol falou... Era a voz do médico Otorrino, a dizer que havia um oásis algures no deserto, um bom centro de orientação para os pais, que lhes dariam todas as informações e apoio. Fortalecidos então por novas esperanças, continuaram a andar até que… avistaram um oásis!
O oásis ficava numa sala de apoio à reabilitação auditiva de bebés no Hospital de Londres, onde uma enfermeira pedagoga lhes deu muita água. Ficaram aliviados e saciados de respostas. Afinal, havia um caminho possível… Havia uma porta de comunicação que me transbordaria ao mundo deles e crescer com devidos conhecimentos da Vida. A salvadora deu-lhes livros, onde estavam registadas as pistas para encontrar uma chave de comunicação e abrir aquela porta…
Com imensa luta e persistência, acima de tudo Amor, encontraram a bendita chave e a porta foi aberta. E assim, os meus pais e eu, minúscula ao colo entre dois, seguimos pelo novo caminho que se avistava risonho e iluminado...
(As emoções dos pais aqui relatadas são frutos da minha imaginação. Na verdade, os meus pais não encontram palavras para transcrever estes momentos bastantes fortes, só os dois sabem o que sentiram. Eu apenas tentei compreendê-los, observando as fotos tiradas em Londres e “escutando” os resumos vagos e soltos dos progenitores.)