sexta-feira, janeiro 05, 2007

Fecho do Blog


Já é hora de dar voltas aos cadeados, com as chaves do meu coração, fechando o primeiro Baú. Está cheio de memórias, não cabem mais. Aqui ficam as recordações escritas desde Maio de 2005 até Dezembro de 2006, ficando agora adormecidas e só voltarão a despertar pelo beijo de olhares de quem as quiser reler.

Desde já, o meu obrigado, com uma grandiosidade igualando a infinidade de estrelas e um sorriso com o tamanho de um arco-íris reluzente, a todos os visitantes!

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Surdas Profundas e Oralistas

foto by SilenceBox

As vagas do mar erguem-se assombrosas, tecendo teias de espuma iradas, sob o olhar negro e diabólico do céu e, em seguida, caem numa queda vertiginosa contra a superfície marítima causando um impacto explosivo. Sou então expelida violentamente, em cambalhotas, para o fundo do mar, sendo o meu corpo sacudido pelas pancadas ensurdecedoras.

Uma vontade de ferro, que há dentro de mim, impulsiona-me a nadar, persistentemente, usando todos os esforços possíveis, para emergir. Ar puro, tão vívido e fresco, envolve-me! Cuspo a água salgada engolida acidentalmente e respiro profundamente.

Relâmpagos rebentam e gritam. São vozes injustas e ácidas, ensopadas de malvadez e ignorância! “Como é possível escreveres tão bem se és surda profunda?”; “Tu não podes ser surda profunda pois falas oralmente, deves ser surda moderada!”; “Tu licenciada? Só deves ter feito exames especiais!”; “Como és surda profunda, a tua língua materna deve ser Língua Gestual!”… Fios de vozes, parecendo intermináveis, enrolam-me dolorosamente. Ainda para dar ênfase a este tormento, como fez o Adamastor destruindo caravelas heróicas dos Descobrimentos, atiram ondas eléctricas provocando um caos desumano ao oceano.

Incho de fúria e de indignação até ao limite, dando braçadas e gritando:
- Parem de me atormentar! O próprio Deus sabe que escrevo bem. Tenho relatórios que comprovam o grau profundo da minha surdez! Segui o Ensino Normal com sucesso, fiz testes e exames idênticos aos ouvintes e, inclusive, exames nacionais para a admissão Universitária! A minha língua materna é a Língua Portuguesa! Estão entendidos, relâmpagos?!

Em resposta, o mar ronca ironicamente - Não pode ser! Não é possível! - , ruge gargalhando ondas! Mais uma vez, sou atirada para o fundo abismal.

Neste preciso momento, em que as luzes tempestivas iluminam a escuridão, detecto uma silhueta esguia a furar o mar, formando uma coluna atrás de si. Dirige-se na minha direcção. Uma mão delicada e grande estende-me, agarro-a e sinto um forte puxão que me conduz para o exterior.

Novamente um jacto de água sai da minha boca, tusso para poder respirar. Pestanejo várias vezes para dispersar a névoa que cobria a minha visão. Aos poucos, em câmara lenta, surge um rosto feminino, emoldurado pelos cabelos castanhos, compridos e lisos, com um par de olhos castanhos cintilantes. Que pupilas tão intensas e profundas! Sei imediatamente o que vê e como escuta. Toco na sua bochecha rosada com a minha mão direita, invade-me logo uma sensação protectora e cândida. Sinto, sob os meus dedos, a dimensão do seu Ser, a riqueza do seu Eu, a sua Existência completa… Está dito, visto e inteiramente compreendido. O nosso silêncio comum.

- Tu… também?! - Interrogo oralmente. Uma pergunta curta mas carregada de significado que diz tudo.

As portas da sua mente abrem-se, par a par, e o seu interior faz-me voar como Peter Pan. Visualizo estrelas mágicas que são palavras silenciosas da sua Essência, um círculo de ilhas férteis que são momentos por que enfrentou e sentiu, o rio de Vida transparente e enriquecido que saiu ileso de obstáculos. Após uma viagem em telepatia, aterro-me na realidade.

Ela pronuncia, aquiescendo, oralmente:
- Sim, eu também…

Uma surda profunda como eu! O mesmo código, a mesma comunicação. Uma oralista como eu! Até a educação e a integração são semelhantes. Possui uma cultura tão vasta e rica quanto a minha.

A luz e a força entrelaçam-nos fortemente e juntas rodopiamos até ficarmos suspensas em cima do mar. A agitação da maré começa então a serenar e o Sol, com o seu sopro quente, varre as crueldades da tempestade. Uma brisa sussurrante e reconfortante afaga os nossos rostos molhados e aquece os nossos corações. Acreditamos uma na outra. Somos a mais pura veracidade, somos surdas profundas e oralistas.

Como reflexo da magia do nosso encontro, o arco-íris pincela sobre o painel azulado do céu com as suas aguarelas coloridas: nós existimos. E assim fica gravado. Milhares de gaivotas grasnam aos ventos, levando a nossa mensagem mútua: nós devemos ser respeitadas e os nossos direitos também reconhecidos!

domingo, novembro 19, 2006

A Chave da Comunicação

foto retirada daqui


(Continuação do post
"O primeiro vestuário dos ouvidos")

Os meus pais e eu, com um ano de idade e poucos meses, ainda estávamos na cidade londrina.

Apesar de estarem um pouco esperançados com os meus primeiros aparelhos, das novas emoções que sentiram quando dei os primeiros passos, das surpresas que tiveram com as minhas reacções face aos novos ruídos, o choque ainda estava bem patente neles, encravado na pele como uma sujidade que seria preciso raspar e retirar com uma esponja.

Não era tudo. Eu continuava a ser surda e seria-o para sempre. Ainda era um imenso fardo para as suas preocupações:

O que vamos fazer com a nossa menina? Como vamos comunicar com ela? Como podemos transmitir-lhe todas as informações? interrogava o meu pai, sempre controlado, com uma mão, enorme e peluda, a pressionar o seu queixo careca, enquanto a minha mãe me fitava com um coração deveras despedaçado e culpado, pegando na minha mãozinha encolhida em bola, como querendo salvar-me do abismo silencioso ou dar-me as cores da Vida, dizendo a si própria “como vou contar à minha bebezinha as histórias de embalar na hora de deitar? Que faço?? É tão viva, tão perspicaz, como os olhitos observam tudo querendo aprender…”.

Os meus pais ainda se sentiam perdidos. Era como se estivessem no deserto. Encontravam-se rodeados de dunas silenciosas e ameaçadoras que libertavam um calor sufocante. As perguntas, que bombardeavam os seus espíritos, eram poeiras de areia erguidas pelo vento e tornavam tudo menos nítido. As dúvidas atrozes e a ausência de respostas ressequiam a sua garganta. O meu futuro parecia consistir num vazio, um beco sem saída… O horizonte do deserto mostrava ser uma circunferência, uma linha circular fechada e uniforme. Estavam no centro do nada. Que rumo deveriam seguir? Leste? Oeste? Norte? Sul? Todas direcções acabavam ali no meio do deserto. De repente, o sol falou... Era a voz do médico Otorrino, a dizer que havia um oásis algures no deserto, um bom centro de orientação para os pais, que lhes dariam todas as informações e apoio. Fortalecidos então por novas esperanças, continuaram a andar até que… avistaram um oásis!

O oásis ficava numa sala de apoio à reabilitação auditiva de bebés no Hospital de Londres, onde uma enfermeira pedagoga lhes deu muita água. Ficaram aliviados e saciados de respostas. Afinal, havia um caminho possível… Havia uma porta de comunicação que me transbordaria ao mundo deles e crescer com devidos conhecimentos da Vida. A salvadora deu-lhes livros, onde estavam registadas as pistas para encontrar uma chave de comunicação e abrir aquela porta…

Com imensa luta e persistência, acima de tudo Amor, encontraram a bendita chave e a porta foi aberta. E assim, os meus pais e eu, minúscula ao colo entre dois, seguimos pelo novo caminho que se avistava risonho e iluminado...


(As emoções dos pais aqui relatadas são frutos da minha imaginação. Na verdade, os meus pais não encontram palavras para transcrever estes momentos bastantes fortes, só os dois sabem o que sentiram. Eu apenas tentei compreendê-los, observando as fotos tiradas em Londres e “escutando” os resumos vagos e soltos dos progenitores.)