domingo, novembro 20, 2005
quarta-feira, novembro 16, 2005
Um Colar de Lágrimas
Recuando ao 11º ano de escolaridade, na área das fórmulas, das contas intermináveis e das reacções mágicas, voltando àquele dia em que ficou tatuado no meu coração.
Quatro colegas conversavam, animadamente, sentadas nos bancos altos e estreitos, à volta de uma mesa rectangular de laboratório, onde no seu centro espreitavam enfileirados tubos de ensaios assombrosos, copos de precipitação brilhantes e gobelés gordos. Este convívio decorria na mais bela melodia.
Saí desta sala por um instante e, quando voltei, cheirei algo de negativo. Algo não me soava bem. As minhas antenas de sensibilidade estremeceram.
Uma delas, M., saiu da sala a alta velocidade passando por mim, visivelmente agitada, e regressou com um grande dicionário. As colegas, que eram agora cinco, fizeram um círculo apertado e debruçaram-se sobre o dicionário à procura de algo... Todas se mostravam concentradas e sérias. Aquele quadro intrigou-me!
De repente, a minha amiga V., companheira de todos minutos na Escola, explodiu de indignidade e mágoa contra uma delas. O bombardeio de palavras entre as duas fez com que se atacassem fisicamente e foram imediatamente separadas à força pelas mãos de outras colegas.
V. agarrou-me e levou-me para fora da sala. Foi, então, que me recapitulou o sucedido.
Uma destas colegas atirou-me uma bola negra emitindo “Surda-Muda”. Uma bola ofensiva que causou um furacão de zangas. V. e M. opuseram-se dizendo que eu era apenas Surda e não Muda. O dicionário até o provou! Contudo, a adversária ignorou… Referiu bem alto, em plenos pulmões, que os jornais e os livros antigos escreviam, geralmente, “Surdos-Mudos”. E eu assim o era! A seguir, apontou-me lançando um raio, de que eu não devia pertencer a esta turma Ouvinte, mas à de Surdos-Mudos.
No final da sua explicação visivelmente tremida, mantive-me impassível. Esta crueldade já não era a primeira… O meu coração construiu, desde muito cedo, uma armadura rija para se proteger contra estas setas cruéis.
Mas V. chorou. Como desejei agarrar aquelas gotas de lágrimas e transformá-las em pedras transparentes para depois fazer um colar, em sinónimo de amizade pura e de reconhecimento!
domingo, novembro 06, 2005
Uma gulodice...
Acaricio as fotos descoloridas, ensopadas pela humidade acumulada ao longo de vinte e nove anos, e com elas tento ressuscitar as minhas memórias de berço.
Os meus olhos de bebé eram grandes e límpidos de vivacidade. Observavam tudo: as formas, as cores, o que tinha movimento e o que era novo e até estranho. Para aqueles olhos, o que viam era um espectáculo de graça, de magia!
O meu olhar seguia precocemente os contornos dos grandes lábios dos meus pais e da pequena boca da minha irmã. Durante estes momentos cruciais de observação, surgia no centro de cada íris negra um brilho de estrelas. Este brilho não parava de piscar. Era um piscar guloso que crescia à medida que vislumbrava os movimentos labiais como se fossem de chocolate.