segunda-feira, março 06, 2006

O perigo à espreita…

Mal entrei na sala de laboratório, o quadro já estava rabiscado de instruções para a realização de uma experiência química.

Como de costume, antes do início experimental, a professora tagarelou pedagogicamente durante uns 10 minutos. Eu não acompanhei esta introdução oral pelo facto de não entender os seus lábios, visto que falava à velocidade de um filme a rodar 4 vezes mais rápido que o normal. Para mim, bastava o que estava escrito. Era como seguir as instruções para montar um vídeo. Fazer isto e depois aquilo. Além disto, eu já sabia o nome de todos os materiais, conhecia quase todas as substâncias químicas e era já experiente nos cálculos. Não tinha dúvidas nem dificuldades. Portanto, de que servia aquelas curtas e pré-explicações? Mas as minhas colegas escutaram atentas, amontoadas em pé num apertado círculo como os pinguins se juntam contra as tempestades de gelo para não perderem calor.

Por fim, o silêncio chegou e começaram a dispersar-se cada uma indo para o seu lugar.

Era um trabalho individual. Iríamos trabalhar com o ácido. Já estávamos informadas de que era uma substância bastante perigosa, que corroía tudo como se tivesse dentes aguçados e invisíveis.

Os nossos objectos indispensáveis, como papel, lápis e máquina de calcular, foram logo explorados para nos darem as respostas quantitativas de que precisávamos para a experiência. Fiz os cálculos pretendidos com uma perícia apaixonante. Era como se estivesse a jogar um puzzle. As peças eram as contas em que tinha de as encaixar umas com as outras. Tudo estava relacionado. O mais emocionante disto tudo era quando o último resultado completava o puzzle! Era uma sensação de triunfo.

Tinha que preparar uma solução ácida. Eu estava confiante nas minhas capacidades e achei que não precisava de espiar as outras para as imitar.

Ali estava um frasco acastanhado, contendo o ácido, à minha espera. Segundo as contas feitas, tinha que retirar um pouco de líquido terrorífico deste frasco para o balão de vidro e posteriormente, acrescentar a água destilada até atingir a uma proporção desejada, formando assim uma solução aquosa.

Num instante, em que já tinha deitado o ácido para o balão, a professora que por acaso ali passeava a observar os nossos trabalhos, estacou atrás de mim. Empurrou-me bruscamente, deixando-me incrédula. Pegou no balão e correu até ao lavatório mais próximo, com o rosto assombrosamente lívido. Abriu a torneira com uma aflição sufocante, como se a própria torneira estivesse em fogo e queimasse os seus dedos, e colocou a barriga do balão para debaixo da torrente de água fria. Afastou-se esticada, continuando a segurar pela extremidade superior do balão para o rodar a 360º, e fechou os olhos à espera que algo pusesse acontecer…

Ali fiquei feita num espantalho a ser abanado ao vento, com o coração descompassado aos saltos, tentado assimilar o acontecimento. As colegas olhavam para mim, quase levando as mãos às bocas para não desatarem a gritar. Estes olhares picaram-me, fazendo-me quase desmaiar…

Nada de grave sucedeu. O balão refrescado pela água fria foi finalmente pousado na mesa. São e salvo. Completamente inteiro.

A professora, já recuperada pelo susto, explicou-me falando devagar, com os lábios ao nível dos meus olhos que, a muito custo, conseguiram ler:
- Desculpa… Por pouco, o balão podia ter quebrado! Eu avisei no início da aula mas esqueci-me de que não ouvias… Avisei todos alunos que deviam deitar um pouco de água destilada para o balão e só depois o ácido. A culpa foi minha… devia ter escrito no quadro. Não volta a acontecer… Já passou…


(Era frequente os professores esquecerem a presença de uma aluna surda nas suas aulas. Não estavam habituados. Eu era a primeira e única surda nesta escola.)

19 Comments:

Blogger Carla said...

Um pequeno incidente, felizmente nada de grave aconteceu.
Bjs e boa semana

9:48 da tarde  
Blogger wind said...

Fogo, que cena! Ainda bem que nada aconteceu:) E sim o Lucas é o meu cão que fez dia 2, 9 anos, é o meu companheiro e amigo fiel. Está sempre do meu lado e atura-e às vezes o mau humor:-) beijos

3:49 da tarde  
Blogger Isabel Filipe said...

...este pequeno episódio...que contas aqui como se nada fosse...mostra bem o que tens passado...por isso...continuo a admirar-te cada dia mais....

e...
...passei para te agradecer o teu cuidado e as tuas palavras...e dizer-te que estou melhor...

Bjs

5:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

ah pois... ja tive situaçoes parecidas, que os setores esqecem-se sempre da presença dos mais "aleijados / indefesos" etc... mas como te disse ontem... parece que nao mas nos somos pessoas que apesar de sufrermos bastante... aguentamos tudo, sem que quase ninguem nos ajude...
bjokas grandes para ti =) espero que esteja tudo bem

9:28 da tarde  
Blogger @Memorex said...

Querida SilenceBox, tento por isso escrevendo cada vez melhor no dia a dia, mas tudo leva o seu tempo e quando menos esperarmos chegámos lá aos pulinhos :p

Em relacção á tua história que escreveste, geralmente eles não têm culpa e todavia isso acontece sucessivamente. Já passei por situações semelhantes quer na escolaridade e no desporto.
Quando eles (os distraídos) estão hiper atentos numa actividade que exige concentração esquecem o resto, o que n pode ser.

Querida SilenceBox não tenho net em casa. O serviço não correspondeu á expectativa da família devido á sua má qualidade... Só espero que seja rapidinho pois tenho saudades de ouvir o teclar do botão, lol.

Adoro-te e muitos beijos fofos, carinhosos com tanta afeição :)

12:29 da tarde  
Blogger sandra said...

olá, conheci o teu blog atraves do blog da "memorex", gostei do que vi e li.
Em relação ao teu episódio, felizmente nada de grave aconteceu, e, em minha opinião, os professores deviam sempre falar e explicar as coisas de forma a que todos possam entender, com ou sem pessoas portadores de qq deficiencia por perto. E está mais que provado que aquilo que lemos fica nos melhor na memória do que o que apenas escutamos.

beijinhos

Sandra

12:56 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querida Silencebox

O bom de tudo, foi realmente não ter acontecido nada, ou seja nenhum acidente grave - e podia ter acontecido!

Imagino que deve haver situações bastante embaraçosas. Também pela pouca atenção (sensibilidade) dada pelas pessoas, em determinados "sinais" que nós recebemos, mas que infelizmente, não damos a importância que devíamos dar!

Um BRAVO!!! para ti minha querida, pela forma como lidas com a situação.

Beijinhos cheios de ternura

12:10 da manhã  
Blogger saltapocinhas said...

E depois dizes que eu é que tive força de vontade? Força de vontade tens tu, mulher! mas cuidado, ainda fazes para aí uma bomba atómica! Se os professores não se lembram da tua situaçõa, lembra-os tu!! (com certeza têm dezenas ou até centenas de alunos, como é costume e depois acontecem estas coisas...)

12:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Não é fácil nem para o professor nem para o aluno quando este é surdo.
Como professor çpassei por algumas experiências mas guardp sempre a primeira que me ensinou mais do que todas as pedagiogias. comecei a minha carreira como professor do Ensino Básioco, logo no início, enquanto falava com os alunos um deles ria e nãlo ligava nada ao que eu dizia, irritado, dei um safanão no rapaz que dezatou a chofrar, foi então que os outros me disseram :-ele não ouve nada.Ficou-me esta para a vida

8:45 da manhã  
Blogger Avó do Miau said...

Um excelente artigo para nos fazer reflectir! Principalmente a valorizar o que temos e de como tantas vezes somos mal agradecidos para com a vida que nos deu total saúde!
Ainda bem que esse incidente teve um final feliz!
Um beijinho amigo,
Daniela.

12:29 da tarde  
Blogger M. said...

Aprecio a tua escrita e a tua observação dos sentimentos e das coisas.
M

4:02 da tarde  
Blogger Maheve said...

Uma lição para refletir, valeu!

Aproveito para te desejar um lindo domingo ;)

1:58 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá silence,

estou com algumas dificuldades em te «comentar». Pela primeira vez desde que me iniciei nesta vida das «bloguices» li todos os artigos de um «blog». Não penses que foi por seres uma «surda», por ter pena de uma «surda». Aliás és a «surda» mais barulhenta que já conheci... :). As tuas palavras tem «encanto»,são doces, bonitas,palavras de veludo», «palavras cheias de sons»... foi como se tivesse a ler um livro e não conseguisse parar de passar página após página... Apesar dos «dificuldades» porque passas, vejo-te comp uma lutadora e como mulher sinto-me orgulhosa disso.
Que pena...que pena...que te deixem ficar no teu silêncio...que não vejam e oiçam a mulher que és!!! :)
Não penses que te estou a «elogiar» pela tua história de vida. Estou-te elogiar pela essência de pessoa e mulher que demonstras ser e obviamente pelo prazer que me deste ao ler-te.
Parabéns!!! Cumprimentos da Princesa

4:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

vá lá, passou!! :)
é natural esta falta de atenção, do uso e do costume faz-se a vida...

mas pronto, certamente que a professora redobrou a atençãoa aprtir daí, certamente que todos os outros...e isto é um alerta, porque certamente também eu estarei mais atenta... vou fazer por isso! :)

até lá... boas escritas

5:45 da tarde  
Blogger Zeca said...

Obrigado pela visita que fizeste ao meu blog, vim ver este teu cantinho e gostei, aproveito para te dizer que te vou linkar ao "Apenas Palavras" em http://adaniel44.blogspot.com/ Beijo

9:37 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O processo de integração pode ser dificil quando os professores não estão preparados para o acompanhar. Felizmente tudo correu bem.
Vejo que és uma pessoa cheia de determinação. Ainda bem. Gostei que me tivesses visitado. Volta sempre.
Beijinhos

11:22 da tarde  
Blogger maresia_mar said...

Olá, gostei muito que me tivesses visitado.. Quanto ao teu post, gostei muito, é pena que as pessoas tidas "como diferentes" não sejam tratadas de igual, por diversas situações, as coisas tendem a melhorar, eu acredito que isso será possível, um dia.. Bjhs grandes para ti e boa semana

10:05 da manhã  
Blogger Margarida B. said...

Olá Caixa de Silêncios!!! Como tens passado? Expresso os meus parabéns!!! Disseram-me que o teu blogue possui uma magia muito especial. Curiosa, atrevi-me em entrar nele. Mal comecei a ler, as minhas lágrimas derramaram na minha face...Não consegui ficar indiferente à carga emocional e singela que impuseste nos teus posts: fez-me recordar algumas situações do meu passado e o que nós- Surdos- temos de enfrentar diariamente a fim de derrubarmos as ditas “barreiras”. Adorei aquele post intitulado “ponte”. Tens a minha palavra! Não consigo deixar de parabenizar-te pela magia que lanças nas palavras. Enfeitiçador, Comovente, Fantástico, Lindo e Puro...As tuas palavras mostraram que os sentimentos dos Surdos -e, também, meus- podem ser transcritos do coração para o papel. Um grande abraço da Margarida Barros!!!

P.S. Aproveito para agradecer à Memorex pela simpatia em ceder-me o link do teu blogue!!!

3:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Como é possível este tipo de situações ainda acontecerem, num País que se diz desenvolvido?
Sim, ainda acontecem!
Silencebox, sei muito bem o que é ser remetido ao esquecimento. Também eu, enquanto aluna, passei por situações idênticas.

10:31 da tarde  

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