domingo, janeiro 15, 2006

O Feitiço das Cartas

Encontro-me sozinha, no meu quarto de criança, com a porta trancada e persianas corridas. Estou sentada a fitar as folhas magrinhas, semelhantes a cartas, que estão infantilmente espalhadas sobre a mesa redonda.

Tenho que escrever uma carta para uma pessoa que me é muito querida e que se encontra a mil léguas de mim.

Tudo à minha volta está quieto, não se atreve mexer. Nem sequer uma poeira se levanta. O candeeiro, alto e imponente, verte luz e calor sobre as minhas mãos, ainda pequeninas, pouco desenvolvidas e frágeis, próprias de uma criança com nove anos. A estante, a cama e as paredes observam-me, escutando a minha concentração silenciosa.

Começo a conversar com uma folha branca, como aquela que está pousada à minha frente. Uma conversa somente visual. Acarinho as suas linhas, fazem-me suspirar… Como é tão bom senti-las sob os meus dedos! Tão macias. A cor das linhas, de um azul-arroxeado, atrai-me para a escrita.

A minha mão direita segura um lápis altivo e afiado e, febrilmente, começa a escrevinhar os momentos alegres passados. À medida que a minha caligrafia se forma e se passeia pelas linhas horizontais, desabrocha no meu interior cada cor de felicidade, até se completar num arco-íris. A sensação que sinto, a viagem por entre os símbolos do abecedário, é como se estivesse a voar, a sentir magia! Cada palavra faz-me crescer.

Não deixo as minhas palavras saírem tortas. As vogais têm de ser bem redondas e as consoantes bem delineadas. Têm que ser tratadas como um gato mimado.

Ao fim de uma hora, termino a carta, redigida com muito esforço por me faltarem milhares de vocábulos. Saio do meu quarto com três folhas, preenchidas pela grafite, e corro para mostrá-las à minha mãe.

– Mamã!! Tenho a carta para veres se está bom!

No momento da correcção fico imóvel, ao lado da minha mãe, observando a minha carta a ser transformada em sangue, as minhas frases, principalmente os tempos verbais, a serem riscadas ou alteradas, com um marcador vermelho. Cada rabisco vermelho queima-me, fico até aturdida! De repente, quando estava à espera de mais sangue derramado, cessa…

– Não há mais erros? – exclamei visivelmente atónita.

– Minha filhota! – reparo o brilho de orgulho no olhar verde, este brilho materno cheio de amor a dizer verdade – A carta está muito boa! Parabéns!

Pego nas folhas doridas, levo-as até ao sítio do meu coração e vou para o quarto aos pulos, cada vez mais feliz com os meus progressos de escrita.

- Amanhã, escrevo mais!


(Este é um dos maravilhosos episódios da minha infância. Com esta idade, já escrevia cartas quase todos os dias. Com prazer. Como se a escrita fosse o meu melhor brinquedo! Quando via erros, nunca parava ou desistia. Embora me fizessem doer, aceitava-os para escrever cada vez melhor. Desde muito cedo, aprendi a sua importância .)

13 Comments:

Blogger @Memorex said...

Querida SilenceBox, gostei muito de ler este texto grandioso, fiquei maravilhada com o teu relato veridico de infância :)
Tinhas uma tenacidade impressionante que com as palavras ditas da tua mãe, orgulhosamente continuaste melhorar a escrita sabendo que era fulcral para ti em todos os aspectos de desenvolvimento :)

Grandes abraços carinhosos para uma pessoa maravilhosa que és tu, um beijão!

P.S-» só começei a dar importância na escrita aos 12 anos.

2:17 da tarde  
Blogger Isabel Filipe said...

Querida Silence Box,

Adorei ler...muito Obrigada por partilhares connosco um momento bonito da tua vida.

e...mais uma vez...Parabéns...escreves maravilhosamente.

Boa semana.
Beijinhos

10:12 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

por mais tempo que passe sem ler e comentar os blogs... sempre que apareço neste cantinho fico simplesmente sem palavras... mesmo sem poderes ouvir, apenas ouvires sons disturcidos... e tens tanta força, tanto entusiasmo por continuar sempre a fazer melhor... o quanto eu desejava de ser assim :( cada vez mais apetece.m desistir de estudar... pois porque quanto mais tento ser boa existe sempre alguem que critica... os meus problemas de ouvidos influenciaram mt a compreensao e por isso nao sou tao boa como gostaria de ser :( mas pronto tento ser o melhor... mas a mim o entusiasmo da escrita so começou quando começei a escrever aqui no meu cantinho e no cantinho dos outros :)
bjinhus****

8:49 da tarde  
Blogger Carla said...

Lindo!!!
fiquei sem palavras para comentar a forma como descreveste um momento aparentemente normal, mas que tem tudo de especial...

Bjx e boa semana

1:04 da manhã  
Blogger Andre_Ferreira said...

Comecei a escrever cartas muito tarde, não tenho tão belas recordações de infância relacionadas com cartas. Quando as comecei a escrever os e-mails tinham quase instinto esse hábito da face da terra! Mas escrever uma carta é fazer um presente para alguém que se gosta( a sensação mais próxima da sensação infantil de abrir um presente é hoje para mim abrir uma carta).
E enviavas todas as cartas que escrevias em criança?
Beijinhos

11:07 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Que lindo!

Bjk

11:21 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Se as escreveste da maneira como escreveste este texto estávam concerteza muito boas. Bjocas.

11:54 da manhã  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Como é bom recordar momentos da nossa infância. Gostei imenso de ler este texto que também me traz à memória pedaços dum tempo que não voltará mas que guardo religiosamente.

Beijos.

1:21 da tarde  
Blogger wind said...

Ler-te é ler uma prosa poética e ver a força interior que tens. Que mais posso eu dizer? Que adoro a tua sensibilidade:) bjs

9:36 da tarde  
Blogger Isabel Filipe said...

...passei...não tens Post novo...aproveito e desejo-te um bfds

bjs

9:36 da manhã  
Blogger Que Bem Cheira A Maresia said...

Desculpa as ausências, mas fui tia pela primeira vez e ando a curtir o sobrinho :)

Boa semana

Beijos da Lina

12:54 da tarde  
Blogger @Memorex said...

Apereci para te desejar um bom fim de semana SilenceBox, um beijão carinhoso :)

P.S-» tenho saudades de falar ctg

5:53 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Como éque o mero relato da escrita de uma carta e a sua correcção consegue fazer-me arrepiar assim, Melrita!
És EXTRAORDINÁRIA! PARABÉNS!

2:55 da tarde  

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