terça-feira, maio 31, 2005

Tempos Perdidos

Sentada sobre um tapete de tempo, em pleno voo, viajo ao passado e revejo-me num vulto adolescente… repiso aquelas salas de aulas e revejo os ponteiros do relógio…

Encontrava-me integrada numa turma de ouvintes, sendo a única Surda Profunda como uma poeira insolúvel num líquido ouvinte.

As horas, que eu por ali passei, enfiada nas quatro paredes nuas da Sala, sentada nas frias cadeiras com os cotovelos pousados sobre as pálidas mesas, eram horas paradas e monótonas. Horas perdidas e sem histórias!

Os professores, de todas as disciplinas, falavam com enorme velocidade, e assim todas as suas palavras escapavam aos meus olhos. Só eu via as suas bocas deslocadas, os estalos da língua, os dentes quer brancos quer pretos, os contornos dos lábios pintados ou naturais. Aqueles lábios em murmúrios indecifráveis e engolidos.

O meu sumário diário, naquelas aulas, era somente: Viagem nos ponteiros do relógio. Entrada no espaço perdido e oco.

Eu, apenas, registava o que os professores escreviam no quadro mas, o que eles escreviam, era escasso. Havia imensos buracos de informação!

Os ponteiros foram meus professores e colegas, eles assinalavam cada segundo, cada minuto e cada hora, diziam quanto faltavam para acabar a aula, insistiam para que eu me aguentasse e que não podia desistir!

Quando terminava o dia escolar, o meu alívio explodia em lágrimas! Um dia já está, outro dia também… Era um sentimento de triunfo! Mas não tinha tempo para mim...
Cada vez que o fio de escola acabava, começava outro fio que continuava nas explicações extras e nos estudos intensivos...

domingo, maio 29, 2005

Ponte

Estou no meio da ponte. As duas margens são dois mundos. Um de surdos e outro de ouvintes. Não pertenço nem a um nem a outro.

Aguardo que, um dia, esta ponte se quebre e o rio se evapore para que os dois mundos se possam unir num abraço fundido. Sem ódios nem rancores. Paz, Luz e Amor numa possível comunicação eterna para todos!

sábado, maio 28, 2005

Barco de Sabedoria


Antes de entrar nas entranhas da profissão subjugada ao mundo de Surdos, o meu barco de Sabedoria radiava cores vivas, transportava consigo a riqueza da Língua Portuguesa, belos tesouros de aprendizagem e uma voz bem treinada.

Navegou no mar alto do trabalho e, inevitavelmente à força, passou sob um temporal das mãos. Os gestos da Língua Gestual inundaram o barco, varreram as jóias da minha Língua Mãe. Desviaram-na por outros caminhos, sacudiram-na…

Neste momento, o meu barco está semi-imerso, abandonado, confuso e ferido. Em desespero, pede socorro aos baldes dos Ouvintes para que o salvem do afogamento da inundação, para que os seus pincéis o pintem de letras e de palavras e assim o restaurem.

O meu barco grita que é tempo de emergir! Anseia por voltar a ser o barco que fora outrora, um barco Oralista.

sexta-feira, maio 27, 2005

A Voz Silenciosa

A Língua Gestual é uma língua bonita e enérgica.
É até um desporto para as mãos! Elas contorcem-se com magia, voam e dançam capazes de se transformar nas mais belas formas.

A Língua Gestual é uma voz silenciosa e extremamente visual. Cada gesto corresponde a um significado despido de palavras. As mãos, a face e o corpo desenham acções e pincelam emoções carnais sob o olhar do silêncio mais profundo.

Mas…
Cada palavra da Língua Portuguesa é amachucada, engolida por cada gesto, tornando-se praticamente invisível.
Por exemplo, a palavra “amigo”. A Língua Gestual não mostra as valiosas sílabas “a–mi–go”, não se pronuncia em voz alta “amigo”, vê-se apenas os braços a cruzar no peito…
Até os verbos gestuais são espremidos e arredondados em esponjas de diferentes cores. “Vou”, “fui” e “irei”. Estes três tempos verbais têm o mesmo gesto, que é um indicador apontado e em movimento. A diferença está na expressão facial.

Por isso, imploro para que falem comigo em Língua Portuguesa. Preciso de ver palavras, todos os verbos e as estruturas frásicas. Preciso de “ouvir” diariamente a Língua Portuguesa! Necessito de conversas difíceis e inteligentes, salpicadas de vocabulário rico. Melhor, necessito conversas de adulto ouvinte! Quero conversas longas e não curtas.
Senão, o meu Português e a minha Cultura esfumam-se…

quinta-feira, maio 26, 2005

A Visão das Crianças Surdas


Observa bem os olhos das crianças surdas!
Com a visão, elas escutam. Com os olhos, elas ouvem.
Ouvem as cores, os movimentos, as danças, os sentimentos.
Lêem os lábios ou descodificam as mãos a gesticular.
A audição está nos olhos.

Estes olhos precisam de ver palavras, objectos com nomes, desenhos com frases, todos os dias! Com repetição! Com Amor! Com paciência!
A Língua Portuguesa não deve escapar aos seus olhos desde o nascimento.
É esta língua que vai abrir muitas portas da sabedoria…

quarta-feira, maio 25, 2005

Festa Natalícia


Num dia de festa natalícia, os pais foram ver os seus filhos surdos fazerem uma peça de teatro sobre o tempo e a chegada do Pai Natal.

Outono e Inverno. Mudanças de tempo. Folhas a cair, vento a uivar, voo de esferovites imitando a neve, construção de um boneco de neve, surgimento de um trenó com um Pai Natal puxado por dois veados fictícios.
Tudo foi interpretado em silêncio e em risinhos da alegria infantil.

Vi as cores de felicidade no olhar daquelas crianças surdas. Os seus olhinhos vagueavam à volta, à procura dos seus progenitores. Vivos e inocentes!

No entanto, observei alguns pais… Estes pais fizeram-me gelar. Li o olhar deles… Reflectia frieza e dor. Senti à flor da pele as suas esperanças mortas, o seu ódio ao destino, a sua imensidão de vergonha. Os pais, inseguros e culpados, mal tocavam nos seus filhos. Eram olhados como deficientes e imperfeitos.
Os mesmos pais ouviram a minha voz e estremeceram-se, não reconheceram de que eu conseguia falar, ficaram antes horrorizados com a minha fala defeituosa e… recuaram simplesmente!

Como desejei dar-lhes umas bofetadas de palavras!

terça-feira, maio 24, 2005

Amor Familiar


Cheguei ao mundo com interceptores da audição fechados para a eternidade mas, nasci sem maldade nem dor, apenas com sede de viver e de aprender.

A minha família abriu-me as portas à Sabedoria, às belas coisas da Vida e do Amor, às pequenas verdades em meu redor e fez-me “ouvir” tudo, inclusive, a Língua Portuguesa.

Orientou-me e concedeu-me independência, autonomia e liberdade, as quais a maioria de surdos não possui.

Se os meus pais não me tivessem dado a sua mão para eu a segurar, não estaria aqui…
Nunca me abandonaram. Sempre acreditaram nas minhas capacidades.

Minha querida e amada família!
Um obrigado cheio de flores e de sorrisos!

segunda-feira, maio 23, 2005

A Nudez


Quero despir-me, pôr-me nua.
Gritar a minha surdez e expô-la aos olhos ignorantes.

Percorri uma floresta de injustiças onde os seus espinhos arranharam o meu coração,
nadei e quase me afoguei num mar negro e turbulento da ignorância social,
fui atacada pelas foices da arrogância impura e da superioridade,
escorreguei pelas cataratas da “perfeição” caindo num beco sem saída!

Murcharam-me, feriram-me, empurraram-me…
Mas nada deste mundo me faz vencida!
NADA!

E, agora, aqui estou eu a gritar para me ESCUTAREM!
Não sou deficiente nem anormal!
Tenho os meus sentimentos, as minhas belezas, os meus sons, as minhas músicas.
O meu mundo do silêncio!
Este silêncio é belo. Profundamente consciente e grandioso
!